“Não basta eleger um governo progressista, que esteja conectado com as demandas populares, é preciso também ampliar a bancada de mulheres, sobretudo de mulheres negras, para que nossas propostas tenham ressonância e sejam vitoriosas”, diz a deputada federal Taliria Petrone (PSOL-RJ) sobre os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas no país. Segundo ela, é preciso mais mulheres negras nos legislativos, para impedir os retrocessos impostos pelo governo Bolsonaro e para avançar em novos direitos, como o aborto legal.
Em meio a casos emblemáticos de violação de direitos sexuais e reprodutivos, como a de uma menina de 11 anos, em Tijucas (SC), que foi impedida de fazer um aborto legal pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e questionada sobre manter a gravidez pela juíza de seu caso, o Ministério da Saúde realizou, na manhã desta terça-feira (28), uma audiência pública para discutir o novo manual para atenção e acolhimento de mulheres vítimas de violência sexual nas unidades públicas de saúde. A publicação, que teve um resumo vazado no início de junho, é criticada por organizações de defesa das mulheres por criar novos obstáculos no acesso à interrupção da gravidez prevista em lei.
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Um dos pontos que gerou polêmica na discussão do manual diz respeito ao entendimento jurídico do aborto, em que diz que “todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”. A versão apresentada não condiz com o código penal. Pela lei, as situações legais de aborto estão previstas nos incisos do artigo 128, e não na forma de exclusão de ilicitude.
Além da incompatibilidade legislativa, o texto da cartilha pode criar margem para condicionar a realização do aborto legal para vítimas de estupro a uma investigação policial, o que dificultaria ainda mais o acesso ao serviço.
Agenda bolsonarista em prática
O número de projetos que criminalizam o aborto apresentados no Congresso desde o início do governo Bolsonaro disparou: foram 43 apenas em 2019 e 2020 – a maioria propondo leis mais severas contra a interrupção voluntária da gravidez. É praticamente o mesmo número de proposições legislativas sobre o assunto apresentadas na Câmara em 23 anos (entre 1995 e 2018), segundo levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
O Estatuto do Nascituro (PL 434/2021), por exemplo, que está em discussão no Congresso, proíbe a interrupção da gravidez de qualquer forma, até mesmo nos casos já previstos em lei. A agenda é uma das principais pautas da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e Direito à Vida, encabeçada pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ).
Segundo Priscilla Brito, assessora técnica do CFEMEA, apesar do Brasil ser signatário de diversos tratados internacionais e do Supremo Tribunal Federal (STF) admitir o direito ao aborto em caso de anencefalia, além das situações de violência sexual e que a gravidez põe em risco a vida da mulher, a fragilidade maior está no atendimento do sistema de saúde.
“[Antes do governo Bolsonaro] Existiam algumas normas e portarias do Ministério da Saúde para que as mulheres e meninas não precisassem provar a violência sexual ou o aborto espontâneo. Agora, essas normativas caíram e o entendimento dos profissionais de saúde de não fazer o procedimento alegando questões religiosas, por exemplo, se sobrepõe ao direito das mulheres de serem atendidas dignamente”, afirma a assessora CFEMEA, organização não-governamental brasileira, fundada em 1989 e dedicada a estudos de mulheres, sobre feminismo, direitos humanos, democracia e igualdade racial.
Para Priscilla, o novo manual do Ministério sobrepõe o direito dos profissionais ao direito das mulheres fazendo com que vítimas de violência sejam expostas e mal atendidas pelo Sistema Único de Saúde. A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com Ministério da Saúde e com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para mais informações, mas não obteve resposta.
Retrocesso nacional e internacional
É sabido que o eixo do governo Bolsonaro em muito se pauta pela agenda neoliberal estadunidense. De acordo com a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), a decisão da Suprema Corte dos EUA de revogar a lei que permite o aborto no país é muito preocupante, pois significa um retrocesso de uma política consolidada, que pode inclusive impactar em outros direitos das mulheres e de outros setores que sofrem opressões, influenciando diversas nações.
“Sabemos que as mulheres negras são as mais atingidas quando um direito histórico é retirado. São elas as que mais sofrem com a criminalização do aborto, pois são as que mais procuram as clínicas clandestinas ou que recorrem aos métodos inseguros para interromper uma gravidez indesejada. São as que estão sempre mais sujeitas às condições precárias. Os retrocessos sempre chegam de forma mais intensa e cruel nos corpos negros”, reitera Petrone.
A pós-doutoranda da Fundação Oswaldo Cruz, Emanuelle Góes, avaliou que, no caso dos Estados Unidos, quando se revoga a legislação, retira-se o meio pelo qual esse direito é visto como legal. Então, segundo a professora, as mulheres estarão sujeitas a serem criminalizadas, principalmente aquelas que já são vulnerabilizadas pela sociedade: negras, latinas, imigrantes, pobres e periféricas.
Contudo, a autora da tese “Racismo e Aborto” reforça a importância do avanço dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina – como no Uruguai e na Argentina, por exemplo.
“Vamos ver como essa pauta pesa no Brasil, tendo essas duas agendas – de avanço e retrocesso. A justiça reprodutiva também é uma pauta que estamos retomando. As mulheres negras, indígenas, migrantes, desde o momento que decidem fazer um aborto precisam contar com uma justiça reprodutiva que vai cuidar e guiá-las para um procedimento legal e seguro. Mas isso ainda é permeado por racismo e misoginia”, pontua.
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