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Mulheres trans: para além da Lei Maria da Penha, quais políticas são necessárias?

Decisão do STJ  é considerada positiva porém tardia para lideranças trans, que lembram que o país é um dos mais violentos do mundo para este grupo

 

 

Imagem mostra um braço levantando a bandeira trans na Parada Pela Diversidade em São Paulo

Foto: Imagem: Reprodução / Agência Brasil

25 de abril de 2022

No início do mês de abril, uma decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi vista como um avanço na defesa à população transexual. Por unanimidade, a Sexta Turma estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Ainda que positiva, a inserção considerada tardia por ativistas revela cenário de escassez de medidas de prevenção e diminuição da violência contra a comunidade. 

A questão da inserção foi dada como inédita por ter sido a primeira vez que um caso foi avaliado pelo Tribunal. A decisão do colegiado aprovou um recurso realizado pelo Ministério Público de São Paulo, que pedia a determinação da aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual após ela sofrer agressões do seu pai – o que não foi atendido pela justiça paulistana. 

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O relator do caso, o ministro Rogério Schietti, reiterou o que é dito pela população transexual há anos, que falta de medidas protetivas para as mulheres não-cis é fruto de um sistema que reproduz uma cultura “patriarcal e misógina”. Em defesa da inserção, Schietti ressaltou que há 13 anos o Brasil aparece como o país com maior número de assassinatos de pessoas trans e que a violência em questão deve ser baseada de acordo com o artigo 5, que prevê a punição contra violência com base no gênero. 

“As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”, afirma o relator. 

Uma história de lutas

A decisão gerou um debate sobre a complexidade de sua aplicação efetiva. Para um dos maiores nomes da luta trans nacional, a deputada estadual e educadora, Erica Malunguinho (PSOL-SP), a inclusão foi tardia. 

“A política institucional é, ainda, um marco social do status tradicional e reacionário. Aos poucos, as populações historicamente excluídas adentram o meio, mesmo que suas trajetórias tenham de ser marcadas por muito mais resistência e denúncia que de proposição ativa, já que a máquina pública se mostra hermética quanto às evoluções por igualdade e democracia plena. De toda forma, vale ressaltar, a inclusão é parte de um movimento histórico e de persistência dos movimentos sociais, e isso é muito positivo”, comenta a parlamentar.

Malunguinho afirma que a presença de parlamentares trans seja importante para o eventual desmantelamento da formatação tradicional das bancadas políticas, dominadas por homens brancos e cisgêneros. Para ela, a inclusão de trans na regulamentação da Lei da Maria da Penha é uma das respostas às cobranças das representantes nos locais de decisão.

Questionada sobre os maiores impactosque a decisão pode ter na redução da crescente violência contra as mulheres trans, a deputada define como “primeiro passo por visibilidade”. Erica acredita que a ação pode se transformar em mudança social, no entanto, se faz necessária que a fiscalização não fique, apenas, a cargo do poder público. 

“O sistema ainda funciona impregnado de valores que visam a manutenção da ordem social estabelecida pelos opressores. Por isso, bato na tecla da representação dentro da política institucional, porque assim é que podemos, para além de apurar a aplicação das leis, criar novas perspectivas de inclusão a partir de fundamentos sólidos e ação ininterrupta”, dispara.

Leia também: ‘A inserção de pessoas trans na mídia é resultado de um processo de luta por visibilidade de anos’, diz ativista

A deputada comenta que também há uma preocupação sobre a dificuldade de aplicabilidade por parte das gestões que compõem os órgãos de segurança e de garantia do que diz a lei. Ela relembra o caso da estação de Metrô Sacomã, em São Paulo, onde uma jovem foi agredida ao ser confundida com um homem ao utilizar o banheiro feminino.

“Essa é uma questão evidente em casos atuais em que a denúncia por crime de discriminação acabou vetada, sendo aplicada apenas a questão da agressão. Essas situações têm sido debatidas com os órgãos competentes, entre secretarias de Justiça e Cidadania e Segurança Pública. É preciso que haja um movimento constante de apuração quanto à aplicabilidade da lei em sua totalidade, infelizmente”, comenta. 

Como outras medidas eficazes e de urgência, há duas semanas, a deputada protocolou um Projeto de Lei 194/2022 que impõe maiores punições aos crimes de misoginia, incluindo todas as mulheres de acordo com a autodeterminação de gênero. São Paulo também conta, atualmente, com a Delegacia da Diversidade para investigar crimes motivados por diversidade e intolerância sexual, étnico-raciais e religiosas, atividade que, segundo Malunguinho, precisa de maior divulgação.

“É imprescindível que além de leis que garantam a segurança, haja toda uma interface de inclusão e naturalização da presença de mulheres trans em todos os meios. Educação e cultura são fundamentais nesse processo”, finaliza.

Pernambuco

A articuladora política e vice-coordenadora da Nova Associação de Travestis e Transgêneros de Pernambuco, a NATRAPE, Caia Maria, também acredita que a medida é importante, principalmente, como redutora de danos. Ela relembra casos que poderiam ser combatidos junto à justiça e com políticas de prevenção, principalmente em um estado que apresenta episódios de violência e assassinatos com requintes de crueldade há anos. 

Só em junho e julho do ano passado, quatro casos de violência contra mulheres trans chamaram a atenção. A travesti negra Crismilly Pérola foi assassinada com tiro à queima-roupa na Comunidade Beira Rio; Roberta da Silva teve 40% de seu corpo queimado no Cais de Santa Rita, na região central da capital e não resistiu; e um último caso, o da transexual negra Kalyndra Selva, estrangulada e morta pelo ex-companheiro dentro da própria residência.

“Este último caso poderia ser prevenido pela inserção e aplicabilidade da Lei Maria da Penha para as nossas. Não acredito que a medida vai zerar os danos, acho que a saída não está no direito penal, mas ao mesmo tempo, tem certamente um efeito sobre mortes que podem ser evitadas, como é o caso da Kalyndra. No entanto, proteger não está orçado pelo poder público, não está sendo refletido que os legisladores seus projetos de lei e, muito menos, no funcionamento do programa criminal”, denuncia a liderança.

No entanto, para Caia, ainda há uma série de complexidades voltadas à agenda transfeminista, principalmente em relação ao sistema criminal que, segundo ela, “tem se interessado em ceifar as nossas vidas”. Para ela, é preciso atenção aos casos de “transfemigenocídio” – termo criado pela própria -, que define um sistema que não versa sobre a preservação da vida das mulheres trans e travestis, como um projeto político voltado à escolha de negligências com este grupo.

“Nós estamos tratando de um histórico de prisões violentas contra pessoas trans e travestis. O sistema não tem interesse de nos proteger, então, com esta demanda da inclusão na Lei Maria da Penha, é preciso agir com bastante cautela em alguns sentidos. Um deles é na questão da revitimização, para que o Estado, enquanto polícia, entenda como pode e deve nos acolher e a outra é na necessidade de inclusão de campanhas preventivas e formativas para que o agressor não volte a praticar a violência”, sugere.

Caia ressalta que as mulheres trans trazem singularidades em suas demandas e, caso isso não seja compreendido pelo Estado, a inserção só será tida meramente em caráter punitivista e formal. A líder sugere que o vocábulo, desde as campanhas, sejam repensados, para que mulheres trans e travestis se sintam seguras e acolhidas em processos de violência e fragilidade emocional.

“Em Pernambuco, a Delegacia da Mulher, desde a sua primeira gestão, tem um histórico transfóbico, por isso, não podemos comemorar, de fato, a inserção em uma perspectiva de que a inclusão será perfeita junto ao sistema criminal. Por isso, outras medidas se fazem necessárias, como a criação da ‘Casa Abrigo’, que há quinze anos batalhamos para termos aqui. Quantas mortes poderiam ser evitadas? Devemos ter formas de preservar nossas vidas sem precisarmos apelar para as contradições do direito penal, que é seletivo e racistas, mas, ao que parece, não há interesse em fomentar”, finaliza.

Na tentativa de estabelecer diálogo com o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB-PE), uma frente que une associações na luta por direitos da população LGBTQIA+, a Rede Autônoma de Travestis e Pessoas Trans de Pernambuco (RATTS-PE) emitiu uma carta-proposta para o combate ao extermínio da comunidade. No entanto, os dados apresentados e as proposições ainda não foram respondidas pela gestão. 

Leia também: Vereadora do Recife afirma não reconhecer mulheres trans e travestis como “normais”

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