As fortes chuvas registradas – entre o último dia 25 até esta terça-feira (31) – gerou estragos no Recife e na Região Metropolitana. Além dos danos causados em residências e estabelecimentos comerciais, a população local ainda lida com o luto do número de mais de 100 mortes confirmadas, 16 pessoas desaparecidas e mais de 6.100 desabrigadas, segundo dados obtidos com o governo de Pernambuco. Diante da tragédia e dos alertas vermelhos emitidos pela Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC), a população apresenta um questionamento: havia a possibilidade de precaução por parte do poder público?
Uma das pessoas que viu seus móveis e eletrodomésticos serem levados pelas águas foi o atendente de doceria, de 22 anos, Victor Calado. Morador da comunidade da Moenda de Bronze, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana, no último sábado (28), o jovem foi liberado mais cedo do trabalho devido aos riscos de não conseguir chegar em casa por causa dos alagamentos.
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Ele conta que bastou duas horas para que a rua onde mora, com sua mãe e uma irmã mais nova, fosse tomada pela água. Sem contar com asfalto e saneamento básico de qualidade, Victor viu a sua rua se transformar em uma grande poça de água, impossibilitando a passagem de veículos e até mesmo de pedestres.
Preocupados, ele conta que todos da casa foram dormir, mas acordaram diante do que mais temiam: a casa já tomada pela água, o que só possibilitou que eles suspendessem os eletrodomésticos mais caros, como a geladeira e o fogão, e saíssem rapidamente param não ficarem ilhados.
“Foi no sábado para o domingo. Desde que eu tinha chegado do trabalho, eu vi que as chuvas não cessaram, mas não imaginava que iria chegar ao ponto que chegou. A rua, antes, já estava tomada pela água, mas não esperávamos que o nível dela subisse e atingisse nossa casa. No domingo, bem cedo, já acordamos na correria. Tentamos salvar documentos, roupas, alguns produtos de higiene e coisas perecíveis. Já a máquina de lavar e geladeira nós colocamos em cima de outros móveis e saímos. Um cenário de caos”, desabafa.
O jovem ressalta que já havia vivido outros percalços por conta da chuva, mas nada comparado com agora. Em 2005, quando tinha apenas cinco anos, ele relembra que a família enfrentou dificuldades na mesma residência, mas que conseguiu passar sem maiores danos. A mesma situação foi vivida cinco anos depois, em 2010.
“Foi triste ver isso acontecendo não só lá em casa, mas nas dos vizinhos. Infelizmente, nós até já tínhamos nos acostumado com essa situação, pela sucessividade em que a chuva entrava nas nossas casas e danificava de alguma forma, mas não como dessa vez. Passamos ainda um tempo analisando se íamos embora ou não, mas chegou uma hora que não teve jeito. A prefeitura local não disponibilizava profissionais para nos dar suporte ou orientações. O jeito foi sair para casas de familiares em locais mais altos e nos proteger”, conta.
De volta à residência na última segunda-feira (30), ele conta que o cenário da rua era angustiante: entulhos, lixo, móveis destroçados e muita lama. Ele ainda denuncia que, mesmo após uma estiagem, tempo em que os moradores voltaram às suas casas para recuperar o que poderia ser reaproveitado, o poder público não esteve presente; segundo Victor, a própria comunidade fez uma força tarefa para ajudar uns aos outros.
“Diante da falta de suporte do poder público, não teve outra forma de correr atrás do prejuízo sem que nós mesmos fizéssemos por nós. Vi vizinhos tentando lavar as suas casas, na tentativa de recuperar o que restou, tanto da estrutura, como dos móveis, mas nem com água encanada estavam contando. Muitos usaram água do próprio rio próximo para ir limpando o grosso. Já outros, sem terem para onde ir, ainda dormem em colchões encharcados. Uma situação que eu não desejo para ninguém”, finaliza.
A situação enfrentada por Victor e sua família não aconteceu apenas em Jaboatão dos Guararapes. Segundo o governo estadual, ao todo, 14 municípios decretaram estado de emergência, sendo eles: Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes, São José da Coroa Grande, Moreno, Nazaré da Mata, Macaparana, Cabo de Santo Agostinho, São Vicente Férrer, Paudalho, Paulista, Goiana, Timbaúba e Camaragibe.
Das cidades citadas anteriormente, algumas estatísticas e análises podem confirmar que a situação enfrentada atualmente é resultado da falta de políticas públicas no que diz respeito à qualidade e acesso ao saneamento básico, rede de esgoto e moradia. O município de Jaboatão dos Guararapes, junto à capital, Recife, estão presentes no Ranking do Saneamento 2022, realizado pelo Instituto Trata Brasil, entre as 20 cidades brasileiras com as piores notas de porcentagem de esgoto e saneamento.
O mesmo protagonismo é visto no último levantamento realizado pelo Plano Local de Habitação de Interesse Social, o PHLIS, que, em 2018, revelou que a cidade do Recife acumula déficit habitacional de mais de 71 mil casas. O dado explica o motivo que leva grande parte daqueles que estão camadas socioeconômicas mais vulneráveis a construírem suas moradias, por exemplo, em áreas de barreiras – localidades com grande chance de deslizamentos frente e umidade do solo.
Problema histórico
Para o vereador Ivan Moraes (PSOL-PE) a tragédia era anunciada. Segundo ele, a situação é um problema histórico vivido pela população que, nas mãos de diversas gestões municipais, não conseguiu vislumbrar melhorias concretas para prever os impactos das fortes chuvas.
Destacando a pesquisa do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que revelou Recife como a 16ª cidade mais vulnerável à mudanças climáticas do mundo no ranking, o parlamentar explica que é sabido que os fenômenos meteorológicos atingem e impactam com ainda mais força a capital e adjacências. Ele afirma que, frente aos fatores identificados, caso não haja mudanças radicais em relação à política ambiental, há a possibilidade de que “não exista mais cidade”.
“Estamos vendo o resultado de problemáticas históricas presentes na cidade, que, hoje, resultaram em dezenas de mortes de pessoas, em sua maioria, negras, e que já se encontravam em estado de vulnerabilidade por falta de políticas públicas. Nas zonas periféricas daqui, nós vemos que não há estrutura adequada de esgotamento sanitário, por exemplo, e isso está presente nas estatísticas. É um fato. Fora a espera por moradia digna, na esperança que muitos tem de irem para conjuntos habitacionais, mas que não foram entregues”, pontua.
Moraes define que a ocupação desordenada da cidade – localizada em cima de áreas de mangue -, a falta de estrutura de escoamento da água e problemas de drenagem e saneament estão entre os fatores que evidenciam a falta de estrutura para receber a quantidade de chuva recebida na última semana.
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Junto ao mandato, o vereador apresentou neste mês uma análise dos investimentos da Prefeitura do Recife com urbanização em áreas de risco em relação aos gastos totais, além dos investimentos com implementação de projetos habitacionais entre os anos de 2013 e 2021.
No levantamento publicado foi possível identificar os seguintes dados: R$ 152,5 milhões foram investidos em urbanização de áreas de risco nos últimos nove anos geridos pelo PSB, enquanto no mesmo período foram investidos três vezes mais em manutenção do sistema viário (recapeamento e tapa-buraco), um total de R$ 452 milhões; a média de investimentos em urbanização de áreas de risco, nos últimos nove anos, é de 0,37% do orçamento geral, bem abaixo da média de 0,94% nos anos anteriores.
Além disso, o estudo revelou que, desde 2020, período em que se passou a publicar os gastos, a mesma gestão teria gasto R$ 142 milhões com campanhas de publicidade, enquanto investiu apenas R$ 84,8 milhões em urbanização de áreas de risco. O mesmo comparativo foi feito em relação aos investimentos habitacionais. Entre 2013 e 2021, foram investidos apenas R$ 3,58 milhões nas 67 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIs) da cidade, numa média de R$ 397 mil por ano.
“Se fizermos um comparativo ainda maior, desde 2002 para cá, mesmo sabendo que, inicialmente, o desafio frente às fortes chuvas eram menores, o dinheiro investido em políticas públicas de prevenção eram ainda mais altos, chegando a 1,65% de gastos com urbanização em áreas de risco. Agora, está se gastando menos, quando as problemáticas são muito maiores. Não faz sentido”, dispara o parlamentar.
Além da questão orçamentária, Moraes afirma que é preciso pensar a forma como se faz a regulação da política urbana na cidade, tendo, entre as pautas, a licitação do lixo, por exemplo. Entre os dados apresentados pelo vereador, no ano passado, em publicação via Diário Oficial, o orçamento aprovado para o setor foi de quase um bilhão de reais. Em contrapartida, apenas 2% dos dejetos presentes na capital são reciclados.
“Ao meu ver, não há como fazer qualquer política pública na cidade e na Região Metropolitana sem levar em consideração as questões que envolvem a transição climática e o meio ambiente. Hoje, é possível que o problema esteja subdimensionado, justamente por afetar as camadas mais vulneráveis e não chegar diretamente nos que podem preservar suas vidas dentro de seus patrimônios, mas entre 60 até 80 anos, se os diagnósticos estiverem certos, é possível que não tenhamos cidade. Isso é sério”, finaliza.
Representação ao Ministério Público
As codeputadas Juntas (PSOL-PE) apresentaram na última segunda-feira (30) ao Ministério Público Federal (MPF) uma Representação pedindo providências diante da ausência diante do impacto das chuvas. Se for comprovada omissão do poder público, as parlamentares pedem a investigação do presidente Jair Bolsonaro; do ministro do Desenvolvimento Regional, Daniel Duarte Ferreira; do governo de Pernambuco; e das prefeituras de Recife, Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe.
Além disso, a mandata ainda sugere a imediata desapropriação de imóveis desocupados no centro do Recife para serem utilizados com fim de moradia emergencial às pessoas que estão desabrigadas e/ou que perderam seus imóveis em decorrência das chuvas e suas consequências.
O documento aponta que, em 2021, no Recife, o executivo municipal remanejou aproximadamente cinco milhões de reais de verbas da urbanização e requalificação dos cursos de água para “Coordenação, Supervisão e Execução das Políticas de Comunicação”. Já o Governo Federal reduziu 45% dos recursos para enfrentamento de desastres.
Assim como Moraes, a deputada estadual Jô Cavalcanti define a tragédia como uma demonstração do racismo estrutural e ambiental, que atinge principalmente os morros e as zonas periférias da cidade dos municípios vizinhos. Para ela, a integridade da população mais vulnerável não é tida como prioridade.
“O que nós vemos de investimento não são ações de prevenção e estruturação das localidades mais afetadas de forma efetiva. Além das problemáticas que envolvem direitos básicos, como a falta de uma rede de esgotamento sanitário e saneamento básico de qualidade, faltam muros de arrimo, melhor estruturação do que chamamos de “barreiras” e, sobretudo, celeridade nas obras de habitacionais que ainda não foram entregues. Já morei em zona de risco e sei o que é essa angústia de não ter novas perspectivas. O que digo é que o inverno apenas começou, por isso, espero que haja um planejamento urbano efetivo em caráter de urgência”, finaliza.
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