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Nova normativa do Incra pode dificultar mais a titulação de territórios quilombolas

Sendo a terceira norma considerada por quilombolas como um ataque aos seus direitos nos últimos oito meses, nova instrução estabelece que decreto de desapropriação só será assinado se houver recurso disponível

Imagem de dois quilombolas, de costas, em frente a uma estrada de terra.

Foto: Imagem: Flickr Quilombos Capixabas/ Reprodução de Assembleia Legislativa do Espírito Santo

8 de setembro de 2022

O mês de agosto terminou com mais um decreto publicado no Diário Oficial da União considerado um ataque para a efetivação de direitos quilombolas. A Instrução Normativa N° 128 do Incra, de 30 de agosto, define procedimentos para a declaração de interesse social de imóveis localizados em terras ocupadas por quilombolas. Entretanto, ao estabelecer que o decreto de desapropriação desses imóveis só deve ser assinado se houver recurso disponível, a normativa pode dificultar mais ainda o processo de titulação das comunidades.

De acordo com a nota de repúdio publicada em 31 de agosto pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a normativa burocratiza o processo de demarcação e titulação dos territórios quilombolas, viola os direitos das comunidades e inviabiliza a efetivação dos direitos constitucionais dos quilombolas de acesso aos seus territórios históricos e ancestrais.

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“O discurso governamental racista de perseguição e negação de direitos das comunidades vem sendo materializado na edição de atos normativos sem consulta às comunidades em total ofensa ao Princípio do Consentimento Prévio, Livre e Informado, garantia constitucional recepcionado na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”, destaca a nota de repúdio.

Segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em matéria publicada em seu portal, o intuito da nova norma é dar maior dinamismo aos procedimentos administrativos para reconhecimento e declaração de interesse social de imóveis localizados em terras ocupadas por remanescentes de comunidades quilombolas.

De acordo com a autarquia, o levantamento da cadeia dominial dos imóveis – relação dos proprietários de determinado imóvel rural – envolvidos no processo de reconhecimento das comunidades vai passar a ser feito logo no início do processo de titulação.

Segundo o Incra, com o levantamento sendo realizado entre a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) e a Portaria de Reconhecimento, parte da destinação do território será acelerada.

“Antes da mudança na IN, tinha todo o trâmite do processo e só lá na frente se sabia que o território era composto por alguma área pública, dos estados ou da União. Com a mudança, se o território for composto por alguma área pública, ela pode ser destinada para a comunidade”, explicou o coordenador-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, Érico Melo Goulart, no portal da autarquia.

Leia mais: Qual o caminho da titulação de terras quilombolas no Brasil?

Já segundo Vercilene Dias, coordenadora jurídica da Conaq, a Instrução Normativa N°128 torna mais moroso o processo. Ela explica que a Portaria de Reconhecimento é um passo inicial e, quando o estudo de cadeia dominial do imóvel antecede essa etapa, o processo acaba se tornando muito lento. “É que enquanto a Portaria não é publicada, não se dá os andamentos aos processos administrativos para reconhecimento e estudos do imóvel”, relata.

Entretanto, de acordo com a coordenadora jurídica da Conaq, o ponto mais prejudicial da Instrução é justamente quando descreve que os decretos de desapropriação só serão assinados pela Presidência da República se houver orçamento disponível para desapropriar.

“Isso é inviabilização do reconhecimento de um direito constitucional, porque nunca tem orçamento. Como é que você vai ter efetivação de direito constitucional se não tem esse recurso conforme a Instrução descreve?”, questiona Vercilene Dias.

Nesse mesmo sentido pontua Arilson Ventura, coordenador nacional da Conaq. Segundo ele, essa é uma declaração de que não vai haver mais titulação de território quilombola no Brasil. “Se o governo não coloca recurso e não quer colocar recurso para titular território quilombola, então está dizendo que não vai titular território quilombola no Brasil. Isso, de fato, traz grandes prejuízos para as comunidades quilombolas”, ressalta. 

O relatório “A conta do desmonte”, publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) neste ano, revela como “a política de regularização fundiária para territórios quilombolas foi completamente desmontada há alguns anos”.

De acordo com o relatório, em 2021, foram autorizados apenas R$ 340 mil para ação de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, dos quais foram pagos somente R$ 164 mil, além de restos a pagar de anos anteriores.

É a terceira normativa em desfavor de quilombolas em 8 meses

A Instrução Normativa N° 128 do Incra é a terceira norma nos últimos oito meses e é considerada um ataque pelas comunidades quilombolas. As outras duas normativas que também entraram em vigor foi a Instrução Nº 111, que regulamenta os procedimento a serem seguidos pelo Incra nos processos de licenciamento ambiental de obras, atividades ou empreendimentos que impactem terras quilombolas, e a Portaria nº 57 da Fundação Cultural Palmares (FCP), que regulamenta o processo de reconhecimento e emissão de certificados às comunidades quilombolas.

“A Instrução N°111, de 2021, cuida do processo de licenciamento ambiental em territórios quilombolas e estabelece que só serão consultadas comunidades que estão com RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação)”, ressalta Vercilene Dias.

De acordo com a Conaq, a norma exclui mais de 90% das comunidades do processo de consulta livre e informada sobre empreendimentos dentro dos seus territórios, porque menos de 10% das comunidades têm RTID (uma das primeiras etapas do processo de titulação) publicado pelo Diário Oficial da União.

Já a Portaria 57 da FCP, segundo a Conaq, burocratiza o procedimento de expedição das certidões de autorreconhecimento ao dizer que a comunidade solicitante poderá ser notificada via portal eletrônico da Fundação Cultural Palmares, no caso de haver a necessidade de complementar a documentação encaminhada. Entretanto, muitas comunidades não dispõem de acesso à internet para fazer a consulta com frequência.

“O que essas regulamentações têm em comum? Além de não terem sido previamente apresentadas e discutidas junto às comunidades quilombolas, ofendem direitos constitucionais quilombolas à autodeterminação, identidade, e à vida nos seus territórios tradicionais”, destaca nota de repúdio da Conaq.

Segundo o coordenador nacional da Conaq Arilson Ventura, essas portarias que o Governo Federal publicou nesta gestão atual só vem trazer prejuízos e retrocessos para a política das comunidades quilombolas.

“O presidente do Brasil já disse em alto e bom som que não iria titular território quilombola no Brasil. Então essa Instrução Normativa N° 128 nos relata exatamente aquilo que o Presidente da República disse ainda quando era candidato. O que o Incra deveria estar fazendo é buscando alternativas e condições para cumprir a legislação e titular o território das comunidades quilombolas no Brasil”, destaca Arilson Ventura.

A coordenadora jurídica da Conaq Vercilene Dias também explica que as medidas estão sendo tomadas politicamente e juridicamente. “A gente está trabalhando para reverter a situação ou fazer os enfrentamentos como devem ser feitos com relação, não só a essa Instrução N° 128, mas às outras normas que foram indicadas nesse período que são muito prejudiciais para as comunidades quilombolas”, finaliza.

Posicionamento do Incra

A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com o Incra para um pedido de posicionamento sobre os prejuízos elencados pela Conaq que a Instrução Normativa N°128 gera para as comunidades quilombolas. Segundo nota enviada pela autarquia, a normativa atualizou procedimentos administrativos do Incra já existentes de reconhecimento e declaração de interesse social de imóveis localizados em terras ocupadas por remanescentes de comunidades quilombolas.

“A referida instrução não burocratizou os referidos procedimentos. A principal mudança foi estabelecer o momento do levantamento da cadeia dominial (identificação do registro) dos imóveis envolvidos no processo de reconhecimento das comunidades. O momento exato para esse levantamento não era determinado em normativo anterior, mas apenas convencionado a ser feito antes do ajuizamento de ações judiciais”, pontua a nota.

“É necessário esclarecer também que a Instrução Normativa nº 128/2022 consolidou os conteúdos de dois normativos anteriores, que foram revogados, em atendimento ao Decreto nº 10.139/2019, que trata da revisão dos atos normativos inferiores a decreto dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal”, explicam.

“Por sua vez, a Instrução Normativa 111/2021 foi publicada pelo Incra para definir os procedimentos administrativos a serem observados pelo Instituto nos processos de licenciamento ambiental de obras, atividades ou empreendimentos que impactem terras quilombolas, cuja atribuição foi transferida da Fundação Cultural Palmares para a autarquia. Sem o normativo, o Incra não poderia analisar os pedidos”, também complementam.

Leia também: BA: Justiça decreta que Incra finalize demarcação de comunidade quilombola

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