Após quase sete anos de luta por justiça, teve início ontem, 30 de outubro, o primeiro dia de julgamento dos assassinos confessos de Marielle Franco e Anderson Gomes, os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz. O primeiro dia de julgamento foi marcado pelo reconhecimento das provas testemunhais do processo, com depoimentos de testemunhas do Ministério Público, da Defensoria Pública e da defesa dos réus, incluindo familiares das vítimas, especialistas e agentes do Estado.
A família revive a dor do dia 14 de março de 2018
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O júri foi iniciado com um momento de dor, e em certo ponto, uma revitimização da única sobrevivente e dos familiares das vítimas, ao relembrarem os fatos do dia 14 de março.
Fernanda Chaves, ex-assessora e única sobrevivente do crime, foi a primeira testemunha a depor no júri, e trouxe detalhes dos primeiros minutos após o crime: “Eu olhava para a Marielle lá dentro e queria acreditar que ela estava viva. Como eu saí inteira dali, não queria admitir que ela pudesse estar morta.”
Já Dona Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, relata como a morte impactou a família, a dor da saudade, da falta que toda a família sente de Marielle, descrita como “um vazio profundo e um coração que possui um buraco irreparável”. Ela também relata o impacto do pós-crime e a morte moral que tentaram fazer de Marielle com desinformação e fake news que foram produzidas na mesma noite do crime sobre sua filha. – “Fico imaginando que alguém foi pago para matar minha filha. Foram tantas fake news, ataques. Gente que disse: deveriam ter queimado ela!”
Agatha Arnaus, viúva de Anderson Gomes, contou do impacto da morte de Anderson na criação de seu filho, Arthur, na época com apenas 1 ano e 8 meses: “o Arthur passava mal todo dia 13 ou 14 do mês, depois da morte do Anderson. Acho que muito também por ver na televisão e pelo jeito que eu chegava em casa. Ele já tinha perdido o pai. Eu estava resolvendo outras coisas também relacionadas à morte. Momento que ele ficou sem o pai e sem a mãe”.
Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, relatou a profunda surpresa e dor ao saber que a morte de sua esposa foi uma execução, com requintes de crueldade. Ela também destacou que Marielle era uma pessoa muito bem relacionada, que se dava bem com todas as pessoas e que era um grande quadro político da esquerda brasileira. Benício afirmou que Marielle estava no momento mais feliz de sua vida, tanto na vida pessoal, quanto profissional, elas planejavam se casar no ano seguinte e as tiraram essa promessa de futuro. Mônica se emociona ao dizer que “Marielle era a pessoa com mais gosto por estar viva que eu já conheci”.
Crime meticulosamente planejado
Durante os depoimentos dos réus confessos, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz explicaram em detalhes como foram contratados, como o crime foi planejado e executado. Lessa contou que o crime começou a ser planejado em agosto de 2016, segundo ele, momento que “surgiu essa proposta em relação a Marielle. Foi chocante pelos números [do pagamento]. Eu aceitei e marcamos a reunião com os mandantes. Nessa reunião, eles me expuseram o nome dela”.
Élcio Queiroz, que dirigia o carro no dia, afirmou que, na virada de ano de 2017 para 2018, Lessa lhe contou que estava envolvido em um trabalho de execução por encomenda, e que queria sua ajuda no dia do crime.
Entre elementos importantes trazidos, Lessa relata como conseguiu o abafador da arma que utilizou para executar o crime, se referindo ao mesmo como um “presente” de um amigo responsável por silencionadores de todos os tipos de arma, e que havia uma imposição para que o crime não ocorresse na saída da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, em uma tentativa de descaracterizar a execução como crime político.
Assassino não é trabalhador, organização criminosa não é empresa
O réu confesso, Ronnie Lessa, integrou organização criada, há 60 anos, por policiais que queriam se vingar de bandidos após morte de detetive. No primeiro dia do julgamento, tivemos mais elementos de como há anos se organizavam os assassinos de Marielle e Anderson. Ronnie Lessa compôs a organização criminosa Scuderie Le Cocq, primeiro grupo de extermínio do Brasil. Responsável por centenas de mortes, a organização se manteve ativa até os anos 2000. Ronnie Lessa, ex-policial e um dos chefes do Escritório do Crime, entrou para o Scuderie Le Cocq em 1989, aos 18 anos de idade, demonstrando sua relação histórica com organizações criminosas e crimes de assassinatos no Rio de Janeiro.
Em muitos momentos, ele se refere ao crime como mais “um trabalho” e “uma oportunidade”, “um negócio” que ele não poderia perder. Tendo sido em determinado momento, inclusive, repreendido pela testemunha de defesa, o delegado da Policia Federal, Guilhermo Catramby, que afirmou categoricamente que “assassino não é trabalhador”. Ronnie mostra orgulho em ser um bom atirador, e afirma que “Eu não me acho, mas as pessoas dizem que sim”.
Não sabia? Tentativa de Élcio Queiroz de se eximir do crime
Imagine entrar em um carro para dirigir e, por acaso, a pessoa no banco do carona ter como objetivo o assassinato de duas pessoas. E você só descobrir isso no caminho? Parece absurdo, certo? Pois foi exatamente isso que Élcio tentou fazer a juíza e o júri acreditarem.
Em seu depoimento, ele alega que não sabia o que aconteceria ao entrar no carro, contradizendo os fatos e ignorando a relação pré-existente com Ronnie Lessa. Élcio Queiroz é padrinho da filha de Ronnie Lessa, o que comprova um longo relacionamento entre eles, além de na época já ter sido expulso da Polícia Militar por fazer segurança de máquinas caça-níqueis.
Quanto custa? Estavam dispostos a pagar qualquer quantia, a qualquer a pessoa
Marielle foi descrita como “uma pedra no caminho” dos mandantes do crime. Por isso, eles estavam dispostos a pagar qualquer quantia para realizar esse crime. Já próximo ao fim do dia de depoimentos, Ronnie mencionou um valor: 25 milhões de reais, quantia que ele afirma ter recebido para assassinar Marielle Franco. A promessa era de que, a partir desse crime, ele se tornaria milionário. Apesar de ter afirmado que não tinha interesse em dinheiro, fica evidente que ele era um homem motivado financeiramente.
Pelos crimes de homicídio, o Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público estadual vai pedir ao Conselho de Sentença do 4º Tribunal do Júri a condenação máxima, que pode chegar a 84 anos de prisão. O júri é formado por sete homens, e a juíza que preside o julgamento é Lucia Glioche. A sessão segue no dia de hoje. Para as famílias, a expectativa é que no dia de hoje, se faça a justiça que o Brasil e o mundo esperam há seis anos e sete meses”.