A tentativa de remoção dos moradores da Favela do Moinho, na região central de São Paulo, reacendeu o debate sobre políticas públicas, direito à cidade e o avanço da especulação imobiliária sobre territórios ocupados majoritariamente por pessoas negras e periféricas. Após pressão popular articulada por movimentos sociais, a comunidade conseguiu suspender o despejo imediato e garantir negociações sobre moradia no mesmo território.
Para a socióloga Nathália Oliveira, cofundadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, a ação representou uma vitória parcial. “O que os moradores conquistaram foi o direito de se preparar para se mudar, de ter uma casa, para morar na mesma região, para que isso não impactasse o cotidiano e os vínculos dessas pessoas nesses territórios”, afirmou em entrevista à Alma Preta.
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Segundo Nathália, a situação do Moinho revela a possibilidade de construir soluções dignas dentro da política pública, sem recorrer à violência, mas também evidencia a necessidade de manter um cordão de proteção formado por movimentos sociais, parlamentares e organizações comunitárias para garantir que os compromissos assumidos pelo Estado sejam cumpridos.
Gentrificação e guerra às drogas em São Paulo
Desde sua fundação, há dez anos, a Iniciativa Negra denuncia o uso da guerra às drogas como justificativa para a remoção de comunidades negras e periféricas em São Paulo. Esse processo se intensifica nas regiões da Luz, Campos Elíseos e Barra Funda, onde as ações do poder público se articulam com interesses imobiliários e têm como consequência o desalojamento forçado de famílias negras.
Para a socióloga, as mesmas pessoas que acusam as favelas de serem centros do tráfico muitas vezes operam diretamente em redes ilegais, demonstrando, segundo Nathália, que o sistema é seletivo, racista e sustentado por uma lógica que favorece a criminalização da população negra.
A criminalização desses territórios envolve a construção de narrativas que os associam diretamente ao crime organizado. No caso da Favela do Moinho, a acusação de que a comunidade seria um “QG do PCC” circulou amplamente pela mídia tradicional. A delegada responsável pela segurança pública na região — a 77ª DP — foi investigada e afastada, em fevereiro, por envolvimento em um esquema de corrupção que movimentou R$ 81 milhões ligados ao tráfico.
O uso do território como ferramenta de exclusão
O terreno onde está localizada a Favela do Moinho pertence à União e deve dar lugar a um parque e a um palácio oficial do governo estadual, como parte de uma parceria entre a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a Prefeitura de São Paulo.
A Iniciativa Negra considera essa mudança simbólica, uma vez que ao substituir um território de moradia popular por equipamentos de governo, o Estado imprime uma lógica de substituição da presença popular por símbolos de poder e ordem. Essa substituição reforça a ideia de que determinados grupos não pertencem ao centro da cidade.
“Assim como grandes empreendimentos na região da Amazônia vão excluindo as populações mais vulnerabilizadas, na cidade acontece a mesma coisa em nome do progresso”, explica Nathália. A socióloga vê nessa prática uma continuidade da lógica colonial, onde populações pobres são deslocadas em nome do “desenvolvimento”.
As restrições impostas a espaços culturais e comunitários no centro também fazem parte do processo de exclusão. Escolas de samba como a Vai-Vai e a Camisa Verde e Branco enfrentam limitações em suas atividades, enquanto bares e centros culturais são pressionados a encerrar suas atividades mais cedo.
Essas mudanças reduzem a circulação de pessoas nos territórios, o que, segundo os moradores e movimentos sociais, diminui a segurança. “A segurança precisa ser construída com inteligência e com presença comunitária, não com esvaziamento e repressão”, defende Nathália.
Cracolândia e higienização urbana
A relação entre a Cracolândia e a Favela do Moinho, para a Iniciativa Negra, se dá por meio da guerra às drogas. Ambas as regiões são alvo de ações violentas do Estado, com operações que espalham e criminalizam usuários de drogas em vez de promover ações de cuidado.
A maioria das pessoas atingidas por essas políticas é negra e vive em situação de extrema vulnerabilidade, conforme revelou em 2023 o relatório “Liberdade Negra sob suspeita: o pacto da guerra às drogas no estado de São Paulo”, da Iniciativa Negra. Segundo o estudo, 54% das pessoas presas por crimes relacionados à Lei de Drogas no Estado se autodeclaram negras.
Para Nathália Oliveira, o que se observa é uma política higienista que busca “limpar” o centro da cidade, eliminando a presença negra e pobre para valorizar economicamente as áreas. A violência estatal, nesse contexto, cumpre a função de abrir caminho para grandes obras e reestruturações urbanas que não incluem os moradores históricos desses espaços.
Em meio às tensões, a Iniciativa Negra articula ações que reforçam a permanência simbólica e política da população negra nos territórios. O projeto Cartografia de Bambas, que será lançado em junho, reúne histórias de vida de moradores e lideranças locais. A proposta é resgatar a memória coletiva como forma de resistência e reivindicar o pertencimento desses grupos à cidade. “É pela memória que a gente marca que sempre esteve aqui”, conclui a socióloga.