Os espaços de discussão pensados dentro do principal evento sobre os desafios climáticos do mundo e realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) é ainda muito masculino. É o que apontam os dados sobre a última Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, ocorrida no ano passado.
Também conhecida como Conferência das Partes (COP-26) e realizada em Glasgow, na Escócia, o evento contou com uma participação masculina de 61,1%, frente a uma presença feminina de 39,9%.
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De acordo com Sylvia Siqueira, ecofeminista e diretora do movimento Nossa América Verde, a COP é um espaço de participação institucional. Nesses ambientes, onde ocorrem as negociações e as decisões políticas, mulheres ainda são a minoria.
“A maioria são homens brancos e ricos. As delegações nacionais de governo também são compostas na maioria por homens. Logo, a nossa participação é mais expressiva através das organizações não governamentais e movimentos, porque somos nós que estamos no front das lutas por justiça. O caminho é longo e complexo”, explica Sylvia.
O levantamento foi realizado pela Alma Preta Jornalismo, que identificou a discrepância de gênero na COP-26. Os dados consideram a intenção de participação total disponível na lista provisória de participação da conferência, com os nomes de pessoas cadastradas para comparecer ao evento.
De acordo com os dados levantados, nota-se que há uma maior presença feminina entre as delegações das organizações observadoras da conferência, o que inclui ONGs, organizações intergovernamentais e unidades e órgãos do secretariado das Nações Unidas. A participação feminina foi de 47,8% nesses grupos frente aos 32,3% de mulheres que intencionaram ir à conferência por meio da delegação oficial de seu próprio país.
“Isso revela que, talvez, sendo muito otimista mesmo, a sociedade civil organizada esteja reconhecendo mais rapidamente o papel relevante das mulheres na resposta à crise climática”, ressalta Natalie Unterstell, presidente da Talanoa, think tank dedicado a políticas ambientais.
Na América Latina, Brasil é o país com mais mulheres na lista provisória
De acordo com os dados levantados pela equipe da Alma Preta Jornalismo, o Brasil teve 278 mulheres cadastradas na lista provisória da ONU. Entre os Países da América Latina, foi a nação com o maior número absoluto. Já entre todas as nações do mundo foi o terceiro, atrás apenas de EUA e Reino Unido, respectivamente. Apesar das posições, a quantidade de homens foi maior, tanto por parte do governo quanto nas partes observadoras.
Crédito: Vinicius de Araujo/ Alma Preta Jornalismo
A desigualdade de gênero presente no Brasil reflete a sua participação na COP. Natalie Unterstell explica que apesar do número considerável de mulheres inscritas, o incentivo à participação delas é menor e ainda sofre ampla resistência nos espaços de decisão.
De acordo com ela, a presença das mulheres deve ir além de números. “Não se trata apenas da presença de mulheres e, sim, de visibilidade e protagonismo nos espaços de decisões da Convenção do clima. O problema alcança delegações oficiais e sociedade civil organizada. Em COPs e mais COPs, observei reuniões e eventos que tinham apenas homens falando ao microfone, em geral brancos e acima dos 50 anos”, afirma Natalie.
A ausência das mulheres nesses espaços é refletida nos dados coletados pela reportagem. Enquanto nas partes observadoras, o Brasil tem 56,7% de mulheres, na delegação oficial elas são apenas 33,4%. A maior participação feminina na sociedade organizada indica o comprometimento das mulheres entre elas, como revela Natalie.
“O incentivo para as mulheres irem às COPs e fazerem diferença vem de outras mulheres e/ou instituições e lideranças feministas. Já se entende que não somos figurantes nem coadjuvantes”, destaca.
A discrepância da proporção aponta a intenção das organizações não governamentais em ampliar a diversidade nos debates cruciais para o meio ambiente global, além de destacar o anseio pela disruptura dos padrões nos espaços de decisão.
A partir dos dados apresentados, a presidente da Talanoa, Natalie Unterstell, sugere que a sociedade civil organizada venha a reconhecer o papel relevante das mulheres na resposta à crise climática. Além disso, ela aponta “que os governos refletem melhor a crise de liderança pela qual passamos e que está no cerne da crise climática”. “Esses governos contam com aqueles que criaram o problema como eternos resolvedores e, spoiler, não vai dar certo. Não está dando certo há décadas”, destaca Natalie.
A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente e a Embaixada do Reino Unido para ter informações sobre as políticas de inclusão de mulheres durante a COP. Até o fechamento do texto, não obteve retorno.
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), em nota, informou que os países participantes das conferências da UNFCCC estabeleceram a meta de equilíbrio de gênero em 2012. Desde então, todos os anos publicam um relatório com a composição de gênero das conferências realizadas para apoiar as Partes no acompanhamento do progresso no equilíbrio de gênero e para promover uma política climática sensível ao gênero.
Destaque das mulheres nas organizações observadoras
De acordo com Sylvia Siqueira, ainda que não fossem a maioria, muitas mulheres do Brasil, principalmente do Norte e Nordeste, marcaram sua presença na Conferência, devido à cooperação com organizações como o Instituto Clima e Sociedade, Open Society Foundation, FES e outras instituições que apoiam a luta por justiça no Sul Global.
Crédito: Vinicius de Araujo/ Alma Preta Jornalismo
“As mulheres indígenas, afro-indígenas, negras participaram de diversos debates nos diferentes espaços da conferência. Um destaque especial para as jovens negras da América Latina e da África que estiveram nos palcos centrais, concederam entrevistas a vários veículos e incidiram na grande narrativa do fracasso político desta COP que não atendeu ao nível de emergência que vivemos”, destacou a diretora do Nossa América Verde.
A especialista em justiça climática, jornalista, mestra em relações étnico-raciais Andréia Coutinho comenta que a COP-26 foi a mais representativa, sobretudo em comparação com a COP-25, que ocorreu em Madrid, na Espanha. Entretanto, o número de representatividade ainda é insuficiente.
“Eu fui na última COP em Madrid e um sentimento muito forte que eu tive lá foi de solidão, enquanto mulher negra naquele espaço. E a COP-26 é difícil em termos de negociação, mas bem representativa. Apesar da pandemia e da escassez de credencial, a gente conseguiu trazer muita gente diversa, pessoas pretas, jovens e mulheres”, explica Andréia.
“Em termos de representatividade ainda está aquém do que a gente precisa, mas muito mais que em anos anteriores”, completa a especialista em justiça climática.
Participação do continente africano e de mulheres indígenas
A África foi o segundo continente que mais tinha mulheres cadastradas para a conferência. Foram 30,8% nas organizações observadoras e 29% nas delegações das Partes.
Crédito: Vinicius de Araujo/ Alma Preta Jornalismo
Em números absolutos, a África foi o continente com mais mulheres em representações governamentais. O continente levou 1.613 mulheres, contra 1.005 mulheres da Europa, 936 da Ásia, 371 da América do Sul, 242 da América Central, 219 da América do Norte e 180 da Oceania.
Colette Pichon Battle, a fundadora e diretora executiva do ‘Centro da Costa do Golfo para Política e Direito’, evidencia as dificuldades existentes para uma maior participação de mulheres africanas no evento.
“Foi um processo muito difícil. Um processo praticamente impossível se você vem de uma nação africana ou de uma nação asiática para conseguir o visto e entrar na COP. Nós não estamos representados e as soluções desse momento tão importante estão seguindo adiante sem os nossos”, ressalta.
Em relação à participação indígena, Nara Baré, coordenadora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), destaca que a Amazônia estava representada por mulheres de, pelo menos, 11 povos indígenas – Baré, Munduruku, Karipuna, Taurepang, Manchineri, Kamaiurá, Paiter Suruí, Tiriyó, Kaxuyana, Xipaya, Wapichana.
A jovem ativista Txai Suruí, indígena do povo Paiter Suruí, foi a única brasileira a discursar na abertura da COP, denunciando o assassinato de Ari-Uru-Eu-Wau-Wau e alertando sobre a necessidade da inclusão dos povos indígenas nas decisões e debates sobre o clima.
Txai Suruí durante a COP-26 | Crédito: Yago Rodrigues
De acordo com a liderança indígena, foram feitas diversas denúncias sobre como a agenda anti indígena em curso no Brasil tem atingido os povos originários de várias formas. “Desde a ausência de políticas públicas para o enfrentamento da pandemia, que ocasionou na morte de mais de mil vidas indígenas, até o deliberado incentivo a atividades ilegais (desmatamento, mineração, grilagem) pelo próprio presidente”, explica.
Segundo Nara, uma grande dificuldade para uma maior participação de indígenas na Conferência é a barreira da língua, já que português não é a materna, nem o inglês, principal idioma falado na COP. A segunda dificuldade é financeira, pois viagens internacionais têm custo elevado.
“Outro desafio é a nossa segurança. A COP é um espaço de muita visibilidade e onde nossas denúncias ganham maior repercussão, nos deixando em situação de maior vulnerabilidade quando retornamos para as nossas casas, sem os holofotes da COP. Alessandra Munduruku, por exemplo, teve sua casa invadida poucos dias antes de retornar. Txai Suruí também sofreu ameaças”, destaca a coordenadora executiva da Coiab.
A exclusão de pessoas trans na COP
Vitória Pinheiro, à direita, durante a COP-26 | Crédito: Yago Rodrigues
A equipe da Alma Preta Jornalismo conversou com a Vitória Pinheiro, jovem ativista, diretora executiva na Palmares e recém nomeada Ponto Focal para Crianças e Juventudes na América Latina e Caribe na CYSC. Ela foi a única mulher trans presente na delegação brasileira. De acordo com Vitória, a representação de pessoas T nos espaços de decisão é necessária, pois os rumos decididos afetam a vida de milhões de pessoas, principalmente as mais vulneráveis.
“A sociedade civil esteve sub-representada na COP, assim como a população LGBT é na sociedade, pois estamos falando de um espaço de decisão que afeta bilhões de pessoas, ocupado por governantes e algumas outras 40 pessoas com credenciais. As outras doze mil pessoas na COP fora desse espaço, participam de maneira ativa com diálogos, redes, conexões e parcerias para trazer ações e soluções para a base”, destaca a ativista.
Vitória Pinheiro destaca que, assim como o que acontece com os grupos mais vulnerabilizados da sociedade, as pessoas LGBTQIA+ também foram sub-representadas na COP. Sendo uma das delegadas oficiais, a ativista socioambiental acredita que, apesar dos avanços sociais, o espaço ainda é muito excludente.
“Eu acho que encontrei três pessoas trans pela COP. Ao mesmo tempo que eu estou representando, eu não estou representada e estou lutando para que a gente possa ir além da representação”, ela avalia.
De acordo com Vitória Pinheiro, os nomes das pessoas trans foram inscritos com o nome de registro e não com o nome social no formulário de cadastro para a COP. A ativista afirma que não havia política da organização que possibilitasse inscrição com o nome social.
“A COP não tem nenhuma política de inclusão e acesso ou diversidade que contemple a população LGBT, sobretudo pessoas trans e não binárias. Esse é um problema estrutural, que no caso da COP, estão colocados para todas as minorias nos espaços de decisão”, afirma.
A ativista ainda revela que a ausência dessa política é uma violência e reforça a exclusão de pessoas marginalizadas e que são majoritariamente afetadas pelas tomadas de decisão da Conferência. “Essa insistência se torna uma coisa comum e simbólica dessa violência que impede as pessoas mais vulnerabilizadas ou excluídas historicamente de poder ter suas vozes e também serem representadas nos espaços de decisão”.
O documento final de participantes da COP 26 revela que 23.351 pessoas foram ao evento, mas Vitória avalia que poucas fazem parte dos espaços de decisão. “A gente vê que o buraco é mais embaixo no sentido de que as pessoas que realmente tem espaço para estar nas negociações são poucas”, complementa.
A Alma Preta Jornalismo também entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente e a Embaixada do Reino Unido para ter informações sobre as políticas de inclusão de pessoas trans durante a COP. Até o fechamento do texto, não obteve retorno.
A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), em nota, informou que, atualmente, estão aprimorando o sistema de registro da COP para permitir o registro além do binário. No entanto, isso já existe para o registro de eventos paralelos e exposições da UNFCCC.
“Além disso, o Código de Conduta da UNFCCC que observamos em todos os nossos eventos também é publicado em nosso site e afirma que o assédio de qualquer forma por causa de gênero, identidade e expressão de gênero, orientação sexual, capacidade física, aparência física, etnia, raça, origem nacional, afiliação política, idade, religião ou qualquer outro motivo é proibido em eventos da UNFCCC”, indicam na nota.
A relevância das mulheres nas decisões climáticas
Quilombolas e ativistas do movimento negro em protesto pelo clima em Glasgow | Crédito: Yago Rodrigues
“Os impactos das mudanças climáticas sobre as mulheres ocorrem em múltiplas dimensões, são simultâneos e estão nas pequenas ações do cotidiano”, é o que afirma a ecofeminista Sylvia Siqueira, que também explica como as mudanças climáticas geram um efeito em cadeia que prejudica setores como o da agricultura familiar e gera problemas de insegurança alimentar, fome e doenças.
Tudo isso acaba por recair e sobrecarregar principalmente as mulheres, que por questões históricas em uma sociedade patriarcal fazem parte de um grupo em maior vulnerabilidade.
“No campo do trabalho, considerando que as mudanças climáticas estão mais drásticas no mesmo período da pandemia, as mulheres também são as mais prejudicadas porque perderam empregos e estão com menos possibilidades de buscar formação profissional para inserção numa economia verde-justa”, destaca Sylvia.
De acordo com Nara Baré, se a COP tivesse mais participação de mulheres indígenas, por exemplo, sobretudo nos espaços de decisão, não se estaria colhendo as consequências da crise climática. “A COP deveria olhar para os modos de vida dos povos indígenas e perceber que se não fosse nossa resistência, talvez estaríamos em situação pior. Lutamos pelos nossos territórios e, consequentemente, pela vida de toda a humanidade”, ressalta.
Sylvia Siqueira finaliza dizendo que a participação ativa de mulheres periféricas, negras, indígenas, quilombolas, jovens e crianças na COP insere elementos essenciais para aprofundar a compreensão sobre causas e consequências das mudanças climáticas, mas também para apontar o caminho das soluções enraizadas na ética do cuidado com as pessoas e o planeta.
“O patriarcado, o capitalismo, o racismo, a xenofobia são mecanismos de estruturação social que nos levam ao fracasso como humanidade, porque estão baseados na supremacia, na destruição e no ódio. Essa visão predomina em muitos que hoje tomam as decisões nos palácios presidenciais e nos salões da COP”, encerra.
No ano de 2022, a COP-27 será realizada no Egito, com previsão de ocorrer no mês de novembro.
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*Texto atualizado em 13 de abril de 2022: foi incluído o posicionamento da UNFCCC sobre políticas de inclusão de mulheres e de pessoas trans durante a COP.