As mulheres negras compõem quase 30% da população brasileira e nas eleições municipais de 2016 foram menos de 5% das eleitas. O que explica esse baixa representatividade?
Texto: Flávia Ribeiro
Edição: Nataly Simões
Dados: Estephany Nunes, Paulo Mota, Samantha Reis
Visualização e ilustrações: Giulia Santos, Nicolas Noel e Vinícius de Araújo
Edição do vídeo: Yago Rodrigues
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Para as eleições municipais de 2020 houve um recorde de candidaturas de mulheres negras, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São 90.753 mulheres pretas e pardas que lançaram seus nomes como candidatas a vereadoras e prefeitas. Um aumento de mais de 20% em relação às quase 72 mil registradas em 2016.
Ainda assim e apesar de serem o maior grupo demográfico da população brasileira, mulheres negras são sub-representadas na esfera política. Do total de candidatas pretas e pardas de 2016, apenas 2.872 foram eleitas para as câmaras municipais. Nas capitais, apenas 32 foram eleitas. Uma delas, Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018.
Dados de 2016 do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis aqui.
Dados do IBGE disponíveis aqui.
Dados de 2020 do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis aqui.
Os entraves para a representação política de pessoas negras são diversos e históricos, conforme explica a cientista política Nailah Neves. “Nosso país é estruturalmente racista e machista e isso se perpetua nos costumes, nas construções de imaginários e também nas instituições, por isso que as desigualdades raciais e de gênero que vemos em todos os espaços de liderança também se repetem no meio político que é dito como democrático e representativo, mesmo sendo evidente a sub-representação e a negação de cidadania plena (direitos políticos, civis, sociais e econômicos) para determinados grupos”, afirma.
Para dificultar as candidaturas negras, Nailah explica que há fatores como o negacionismo do racismo entre os partidos políticos, majoritariamente coordenados por pessoas brancas. Já para a elegibilidade, a cientista política diz que há questões como a visibilidade tanto do candidato como de suas pautas, do financiamento e a campanha como um todo, além do imaginário do eleitor diante de estereótipo racistas, que ligam a população negra “à criminalidade, à irracionalidade, à violência, ao primitivismo, ao próprio demônio, à irresponsabilidade, à preguiça, enquanto constroem acerca dos brancos uma imagem de intelectualidade, racionalidade, heroísmo, bondade e até santidade”.
Dados de 2016 do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis aqui.
Dados do IBGE disponíveis aqui.
Os dados do Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que negras são minoria mesmo na fase de candidatura. Em 2016, das 2.150 candidatas a prefeitas, 682 eram negras e das 153.314, para o legislativo municipal, 71.215 eram negras. Isso significa que mulheres negras encontram dificuldade até mesmo para se candidatar, mesmo formando quase 28% da população brasileira.
Para 2020, as estatísticas do TSE mostram que cerca de 40% das mulheres negras candidatas têm o Ensino Médio completo; 20% delas têm formação superior, um número maior que a taxa geral de mulheres negras com ensino superior. Publicada, em 2018 pelo IBGE, a pesquisa “Estatísticas de gênero” informa que o percentual de mulheres negras com o ensino superior completo é de 10,4%, enquanto o de mulheres brancas é de 23,5%.
Dados de 2020 do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis aqui.
Das 32 mulheres negras eleitas para as capitais, apenas seis eram pretas, conforme um estudo do Instituto Socioeconômico (Inesc). Dessas, apenas uma não tinha o nível superior completo. Nailah destaca que na elegibilidade pesam fatores como escolaridade, economia, profissão e até rede de contatos.
“Assim como existe uma desigualdade salarial e uma desigualdade de reconhecimento entre pessoas negras e brancas em outros serviços, também há desigualdade na escolha da representação, exatamente pelos imaginários já construídos baseados em estereótipos de raça, de gênero e de classe. Um homem branco de estudo mediano terá mais credibilidade que uma mulher negra com várias formações acadêmicas, porque ele é o representante da intelectualidade”, salienta.
“O negacionismo científico pode ser novidade para a branquitude no meio político, mas é uma realidade há séculos para os povos negros e indígenas que viram toda sua história, filosofia, ciência e ideologias políticas serem apagadas, menosprezadas e silenciadas”, pontua Nailah.
A cientista política aponta que diretórios de partidos compostos por mais mulheres negras ajudariam a mudar o panorama excludente uma vez que alterariam o poder de decisão no recrutamento e definição de prioridade de pauta nos partidos. “Ter cotas raciais para um número mínimo obrigatório de candidaturas negras dentro dos partidos e uma reforma eleitoral que determine uma lista fechada que respeite a proporcionalidade racial e de gênero do país e contemple também as minorias estatísticas como os indígenas, garantindo assim que negros, indígenas e mulheres sejam eleitos”.
Dados de 2016 do Tribunal Superior Eleitoral disponíveis aqui.
Dados do IBGE disponíveis aqui.
Com mais de 76% da população autodeclarada negra, os municípios da Bahia registraram o maior número de candidaturas negras em 2016. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que em todo o estado 78,6% eram pessoas pretas ou pardas. As mulheres, no entanto, representavam 30% entre candidatos. Já entre eleitos, elas chegaram somente à 12,1%.
Naquele ano, a capital baiana elegeu quatro mulheres negras como vereadoras: duas pretas e duas pardas. Uma das autodeclaradas pretas é Marta Rodrigues. Na Câmara Municipal de Salvador, ela é uma das oito mulheres eleitas.
“A capital baiana tem 52% de sua população de mulheres, mas somos totalmente sub-representadas nos espaços políticos. O peso de ser mulher negra é imensurável de calcular. O paradoxo é muito grande, pois sou vereadora negra dentro da capital mais negra do país. Precisamos nos impor cotidianamente, pois convivemos em uma linha frágil entre a institucionalidade e o machismo e racismo institucional”, relata a parlamentar.
Formada em Letras, Marta é filha de agricultores e começou a trajetória política no movimento estudantil. Ela ressalta que ter mais negras na política, é fundamental para efetivar a democracia no Brasil. “Ter mulheres negras na política é não só fazer valer a representatividade da população, mas escancarar a desigualdade de gênero e racial que vivemos. O TSE revelou recentemente que as mulheres são 52% do eleitorado brasileiro. A maioria das mulheres negras exercem atividades três vezes ao dia, aliadas ao estudo, para poder dar conta da família. Enquanto isso, as mulheres recebem os menores salários: 20% a menos, em média, que os homens”, frisa a vereadora baiana, pontuando que apesar desses números, mulheres são minoria nas cadeiras das Prefeituras, Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Senado e Câmara dos Deputados.
“Se formos fazer o recorte cor/raça, entramos em uma porcentagem ínfima. Mulheres negras na política são fundamentais para lutar por uma população, que, embora maioria, não é ouvida e nem tem seus direitos básicos atendidos. Somos importantes na política para dar voz, espaço e brigar junto com os movimentos sociais e de mulheres negras que lutam para ter suas demandas e pautas representadas e aprovadas nos espaços de decisão”, acrescenta.
Segundo a vereadora, o desafio não termina ao se eleger. Mesmo após eleita, Marta teve de enfrentar dificuldades dentro do parlamento. “Já ocupando o cargo eletivo, as dificuldades são enfrentadas em todos os ambientes dentro do espaço político onde temos debates: nas reuniões, nas comissões, nas audiências, nos encontros com secretários do executivo municipal e dentro do próprio plenário, onde também debatemos e levamos projetos a votação”, conta.
A parlamentar diz ainda que há sempre uma tentativa por parte da maioria – homens brancos – de silenciar as mulheres e tentar interferir em seus discursos. “Por isso, nosso tom tem que ser alto, nossa imposição tem que ser reforçada para nos fazermos ouvidas, interrompemos, pedimos silêncio: tem que ter peito e coragem para não nos deixarmos intimidar”, desabafa.
No estado do Rio de Janeiro, por sua vez, a população negra representa, em média, 51% da população. Em 2016, a taxa de candidaturas negras foi de quase 44%. O total de candidaturas foi de 17.085 e as mulheres correspondiam a 5.174, ou seja, 30,3%. A sub-representação se agrava entre os eleitos, onde as mulheres foram apenas 9%.
Na capital foram eleitas sete mulheres, dessas duas negras: Tânia Bastos, declarada como parda, e Marielle Franco, como preta. Com o assassinato da vereadora do PSOL, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro perdeu a sua única representação de mulher preta.
No caso de São Paulo, negros abrangem, em média, 34% da população. Em 2016, a percentagem de candidaturas negras foi de apenas 25%, revelando a desproporção entre candidatos e população. Assim como nos outros estados com dados analisados pelo Datalabe, o percentual de mulheres candidatas foi próximo de um terço do total: dos 7 mil eleitos naquele ano, as mulheres negras correspondiam a 1,4%, ou seja, 103 eleitas, sendo 70 pardas e 33 pretas.
Esta reportagem faz parte da cobertura racial das Eleições Municipais no Brasil, produzida em parceria com o Data Labe.