Catharina Rocha, autora do projeto “Tons do Brasil” e especialista no tema da identificação racial e colorismo, escreveu para o Alma Preta sobre os processos de eugenia no país e nos EUA
Texto / Catharina Rocha
Imagem / Divulgação
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Nos EUA, os debates sobre raça serviram e servem até hoje como base para o modelo brasileiro de ações afirmativas. O Brasil e os EUA se assemelham muito quando falamos sobre questões raciais, porém as diferenças além de gigantescas, são importantíssimas.
Nos censos norte-americanos, a composição da população por meio da classificação de raça é dividida em dois termos: brancos e não-brancos, ou seja, optaram pela classificação binária.
Lá, os não-brancos não são caracterizados apenas por pessoas pretas, e sim, englobam todos os ‘mestiços’, frutos de qualquer combinação inter-racial existente.
Essa diferença ocorre, pois a segregação racial nos EUA é mais forte e mais rígida do que no Brasil e a razão disso se dá a um simples fato: na sociedade norte-americana a raça de um indivíduo é determinada pela ancestralidade. Ou seja, nos EUA, ‘mestiço’ ou ‘pardo’ é sim, negro.
E por que esses conceitos são diferentes em cada país?
Os dois países possuíram, ao longo de sua história, leis de embranquecimento distintas, que ajudaram a construir o cenário conflituoso da identidade negra em suas respectivas nações.
Em resumo, o embranquecimento se baseia no conceito de Eugenia, que afirmava a superioridade na raça branca em relação às outras raças.
Nos EUA, o conceito de Eugenia surgiu no século XIX e foi implantado através de uma lei do século XX, que durou até 1968. Essa lei, denominada como “one-drop rule” (ou “regra de uma gota”, em português), foi uma norma anti-miscigenação segundo a qual qualquer americano que tivesse algum grau de ancestralidade africana, ou qualquer outra não-europeia, não era considerado branco, mas sim uma pessoa de cor e era proibida de se casar ou fazer sexo com a até então famigerada raça superior.
Já no Brasil, a Eugenia se instaurou através da “lei do embranquecimento”, também surgida no final do século XIX, mas criada para incentivar a mestiçagem.
Aqui, essa questão aconteceu durante o processo de transição do abolicionismo e com o incentivo do imperialismo europeu, e do capitalismo no país.
O plano de miscigenação no Brasil consistia em, basicamente, atrair imigrantes com promessas de terras e mão de obra barata garantidas para que copulassem com as negras e índias que aqui residiam.
De acordo com o artigo “A diferença como prestígio: a representação social do branco no livro didático”, de Ana Célia da Silva, o desejo de transformar o Brasil com esse ideal hegemonicamente branco pode ser observado na lei de imigração brasileira instaurada em 8 de junho de 1890, que impedia legalmente o ingresso de negros e asiáticos no país.
Essa lei de embranquecimento mostra um ponto histórico muito relevante para a construção de uma discussão racial brasileira e da identidade do nosso povo.
No livro “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, de Abdias Nascimento, o autor também fala sobre a lei de embranquecimento, já no século XX. Segundo ele, em 18 de setembro de 1945, foi assinado por Getúlio Vargas o decreto-lei nº 7.967, que regulava a entrada de imigrantes “de acordo com a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da população as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.
O decreto exigia que possíveis imigrantes se apresentassem pessoalmente ao cônsul para que o diplomata visse o candidato e relatasse se era branco, negro, ou se tinha alguma deficiência física. Naquele período, a alta classe da sociedade brasileira e muitos homens do governo, incluindo o próprio Getúlio Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relacionado à má formação étnica do povo. Acreditava-se que “bons” imigrantes, os imigrantes brancos, ao se integrarem à população não branca, fariam com que o Brasil em 50 anos se transformasse em uma sociedade mais desenvolvida.
Gilberto Freyre é um dos principais formuladores do pensamento social brasileiro e da ideia da democracia racial (Imagem: Divulgação)
A estudante de artes cênicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marina Affarez, de 22 anos, possui em sua família um caso explícito da lei de embranquecimento instaurada durante esse período no Brasil.
Apesar de possuir, pelo lado de seu pai, uma família muito pouco miscigenada, de predominância negra e de ascendência africana, a família de sua mãe é mais uma das típicas famílias com diversas etnias espalhadas pelo país.
Sua mãe é descendente de índios, negros e italianos, e se autodeclara, atualmente, como uma mulher negra de pele clara. Porém, Marina conta que, como sua mãe, Rosana, possui um tom de pele um pouco mais claro, traços muito finos e um nariz bem afilado, ela cresceu com a concepção de que a mãe era uma mulher branca e o pai, um homem negro retinto.
Como nota-se, a percepção de Rosana, mãe de Marina, mudou com o tempo, indo de mulher branca para mulher negra de pele clara.
Marina conta que sua tetravó, ou seja, a mãe da mãe de sua avó, foi um caso de miscigenação extremamente violenta.
Indígena, porém com pai africano escravizado, a tetravó de Marina viveu em sua tribo durante toda a sua infância e adolescência. Marina conta como sua avó foi “laçada”, sequestrada de sua tribo, para longe de sua família, para se casar com um homem branco italiano, seu tetravô.
A história que a família sabe é de que o casamento funcionou como uma troca e seu tetravô, de origem italiana, odiava o fato de ter se casado e tido filhos com uma mulher identificada como não branca.
“A troca funcionava mais ou menos assim: a condição para que ele pudesse imigrar para o Brasil, já com um terreno e uma casa, era se casar com uma negra e reforçar o plano de miscigenação brasileira”, cita Marina.
Ou seja, no Brasil, a miscigenação passou a ser incentivada, como forma de afastamento do passado preto e escravizado.
O x da questão…
É necessário compreender todo um processo histórico e conceitual, para podermos aplicá-lo aos dias atuais e mesmo assim, fica nítido como no Brasil, raça e cor se confundem.
Estão aí para comprovar casos famosos como os dos jogadores de futebol Neymar e Ronaldo ou da cantora Anitta, que já negaram a ascendência negra, mas são vistos por cada brasileiro da forma que lhes é mais conveniente ou que se enquadre num padrão estereotipado de raça.
E, claro, essas avaliações vão tomar um rumo diferente quando se percebe regionalidades diferentes, classes sociais diferentes, famílias e criações diferentes e até mesmo, sexo e orientações sexuais diferentes.
E quando você mesmo não sabe o que é, e quando os outros tentam lhe dizer e isso muda a cada nova opinião, aí é que tudo fica mais complexo.
E qual é o ponto disso tudo?
Há uma conclusão óbvia nessa discussão: ser mestiço nos EUA é estar mais próximo da sua ascendência negra e ser mestiço no Brasil, é estar mais próximo da sua ascendência branca.
Logo, fica mais compreensível o motivo pelo qual existe tanta complexidade ao tentar definir a classificação racial do pardo.
A classificação de pardos tem relação direta com a miscigenação e com a questão do embranquecimento, ou não, de uma população.