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A paleta de tons pretos e a seleção do suspeito

22 de fevereiro de 2019

Viviane de Paula é poetisa e escreveu para o Alma Preta sobre as muitas situações em que negras e negros são observados como suspeitos; o texto traz uma memória ao assassinato de Pedro Gonzaga, em 14 de Fevereiro, em uma loja do mercado Extra, no Rio de Janeiro

Texto / Viviane de Paula
Imagem / Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo

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Ao entrar em uma loja, é de praxe para qualquer jovem negro e negra tentar minimizar qualquer atitude que os façam suspeitos. Se estiver em uma loja de departamento, não deixe a bolsa tão à mostra, evite mexer nela enquanto passa pelas araras de roupas também; não encare os seguranças enquanto eles lhe medem com grau analítico para lhe rotular: suspeito.

Não se demore em drogarias lendo rótulos para os seus estonteantes cabelos crespos, porque, sem dúvida, funcionários treinados estarão com olhos atentos prontos para o famoso “posso lhe ajudar?” quando, na verdade, já lhe afirmaram: suspeito.

Se vir um burburinho vindo em sua direção, jamais corra. Isso mesmo: jamais corra. Mantenha a calma, a tranquilidade no rosto e tente manter expressão e a postura de quem estava realmente só passando por ali, sem nenhuma intenção de ser considerado: suspeito.

Quando estiver voltando do barzinho ou da balada às 2h da madrugada e você e seus amigos forem parados em uma blitz, nunca demonstre nervosismo, resposta às perguntas do sinhô policial com serenidade, sem titubear ou gaguejar, mesmo que seja difícil, nunca se porte como um – você já sabe o que, né? – suspeito. Agradeça no final e demonstre respeito, é claro.

Jovens negros e negros se veem a todo instante tentando barrar ou evitar esse estigma social que recebem sem pestanejar, sem que possam provar que a melanina exacerbada que carregam na pele não deve ser capaz de lhe negar espaços ou vozes. Tantas vezes, eu e você que está lendo este texto agora nos perguntamos: como não ser a próxima suspeita (a)?

Por serem suspeitos, jovens negros e negras perdem suas vidas no portão de casa; são arrastados por metros com os seus corpos sangrando e se esfarelando no asfalto como um carne podre e rarefeita; são mortos por saírem em grupos para comemorem o primeiro salário de um amigo; são perseguidos por meramente terem na pele e nos traços aquilo que os fazem que são: para sociedade, suspeitos.

Mais um menino negro, com apenas 19 anos, identificado como Pedro Gonzaga, foi sufocado pela primazia de um Estado que negligencia e não nos representa. Aconteceu, desta vez, no Rio de Janeiro, em uma rede bastante famosa de supermercados na Barra da Tijuca, mas já aconteceu em São Paulo, em Recife – aqui, e aposto que aí bem do seu lado também. Somos mortos todos os dias de formas diferentes e massacrantes pelo fato de carregarmos o rótulo: suspeitos.

O rapaz foi imobilizado por um segurança, no início da tarde desta quinta-feira, 14, e acabou sufocado. Nas imagens, gravadas por pessoas que estavam no local, o segurança aparece deitado sobre o jovem, aparentemente desacordado, e nega pedidos de outros para que o solte.

Uma delas questiona: “Está desmaiado, não está, não?”.

Outra afirma “Ele tá com a mão roxa”.

Pedro Gonzaga manifestação Capa 2

Manifestação no Rio de Janeiro pediu justiça por Pedro Gonzaga (Foto: Ana Paula Souza/Ponte Jornalismo)

No entanto, o segurança se nega a sair de cima e responde: “Quem sabe sou eu!”. Outros funcionários do supermercado ainda circundam os dois homens no chão, mas nada fazem para evitar. E daí? É só mais um corpo negro estendido no chão, sem comoção ou panelada nacional.

Em 2017, a mesma rede de supermercados foi multada por constranger uma criança negra a comprovar suas compras em São Paulo. A criança de apenas 10 anos foi conduzida até uma sala, na qual sofreu agressões físicas e verbais e, muitas delas, com teor racista. E quer saber mais? Ela foi acusada de furto e constrangida a prestar esclarecimento, apesar de trazer consigo a nota fiscal dos produtos que carregava.

Os espaços geográficos não coincidem, mas outros pontos em comum ligam esses dois jovens negros – e muitos outros – que não podem viver livremente sem que sejam taxados potenciais suspeitos.

Não encerro este texto com flores, pois elas secam e só deixam rastros. Encerro este texto, com poesia, que traz revolução e nos afaga o peito para aqueles, que assim como eu, não se bastam com o perfume das rosas:

Mas mesmo encadeado, irmão,
que estranho feitiço o teu!
A tua voz dolente chorou
de dor e saudade,
gritou de escravidão e veio murmurar à minha alma em ferida
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar…
Veio, de manso murmurar
que a tua canção é minha.

Canção fraterna – Noémia de Sousa

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