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A perversidade, a fabulação e as possibilidades de Pelé

Pelé estimulou a demolição da tese do supremacismo racial branco, redimiu negras e negros e, sem saber, provocou uma crise na fábula da "democracia racial à brasileira": brancos no topo, pretos na base

 Imagem: Reprodução

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30 de dezembro de 2022

Com 17 anos e 239 dias, em 19 de junho de 1958, aos 21 minutos do segundo tempo, um menino negro e franzino aparecia para o mundo na Copa do Mundo de futebol da Suécia, com o belíssimo gol da vitória brasileira sobre o País de Gales. Este negro brasileiro jogou 1.282 partidas e marcou 1.363 gols.

O inesquecível, o milésimo, foi anotado em 1969, no Maracanã, na vitória de 2 a 1 do Santos sobre o Vasco, time com história única de enfrentamento ao racismo no futebol. O goleiro Edgardo “El Gato” Andrada trisca a mão na bola para depois, vencido, socar com fúria o gramado. Pelé corre para dentro do gol em direção à bola, como havia feito ao marcar contra os galeses na Copa da Suécia. Beija a “gorduchinha” (salve, Osmar Santos!). Dedica o gol às criancinhas. Exceto Andrada, enraivecido com a quase defesa, todos parecem felizes.

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Pelé foi campeão mundial de seleções em 1958 (arrebentou), em 1962 (essa foi de Garrincha) e em 1970. Nesta última, minhas deusas, fez “prosa” (jogo coletivo) e “poesia” (brilho individual) e na final venceu a “prosa estetizante italiana”, como escreveu o cineasta Pier Paolo Pasolini meses depois, em artigo primoroso. Minhas memórias da Copa de 70 estão muito vivas, preservadas como no espanto de quem se depara com “Guernica” de perto no Museu do Prado. É possível dizer assim, sem medo, que em 1970 Pelé elevou o futebol a um novo patamar estético. Todos os jogos brasileiros foram lindos. O dueto dele com o goleiro uruguaio Mazurkiewicz foi um espetáculo à parte, afastando para longe o espectro do “Maracanazo”.

Na Copa de 1950, o Uruguai derrotou na final, em pleno Maracanã, o Brasil, que elegeu um anti-herói: o negro Moacyr Barbosa Nascimento, o maior goleiro de sua época no país. “Nós ganhamos, vocês empataram e Barbosa perdeu”, resume a presepada, que ressuscita o cadáver teórico do “racismo científico”. Reviveram, na marra, a tese do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia: “O branco pensa e o negro trabalha, pois este é incapaz de desenvolver atividades que exigem concentração e raciocínio lógico”. Essa métrica moldou por décadas a imagem de brancos e negros no Brasil. Não seria diferente no futebol e, na linha do tempo, Pelé redimiu Barbosa.

Pelé redimiu negras e negros e, sem saber, provocou uma crise na fábula da “democracia racial à brasileira”: brancos no topo, pretos na base. Ele estimulou a demolição, em todos os quesitos, da tese do supremacismo racial branco. Sua genialidade carbonizou os esteriótipos racistas do preconceito (“o negro é preguiçoso e incapaz de pensamento inventivo e criativo”), da discriminação racial (“o negro é incapaz de sobreviver nos espaços do branco”) e do racismo (“o negro é incapaz de expressar sua essência humana soterrada na barbárie da escravização”).

Com majestade, Pelé conviveu (viveu/sobreviveu) com súditos pretos, pardos, vermelhos, amarelos e, sobretudo, brancos. Antes das redes sociais, ele magnetizou o imaginário coletivo em todo o planeta: o rei está nu e, pasmem supremacistas, é negro! Dos campinhos de várzea aos estádios dos cinco continentes, fomos Pelé, todos meninos e meninas negras.

Sem ele, mesmo escondido no território do inconsciente, a seleção brasileira não seria amistosa para Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, Romário e Vini Junior. Na Europa, sem ele, o racismo seria mais cruel com o ganês Abedi “Pelé”, o camaronês Samuel Eto’o, o holandês Ruud Gullit e os franceses Lilian Thuram e Kylian Mbappé. Talvez não houvesse Dener, Juari, Edilson, Robinho e Neymar. O Brasil não dança porque joga bem, mas joga bem porque dança, toca e canta ao som dos tambores! Graças a Pelé. Fomos/somos Pelé.

No metaverso bizarro, por outro lado, Pelé gerou um avatar humano, tratado por ele em terceira pessoa, um tal de Edson Arantes do Nascimento. O humano é falível (“sabe como é”). Um avatar humano, mais falível ainda. Edson poderia ter sido nosso Muhammad Ali-Haj, mas escolheu não ser. Seduzido pela redenção eugênica de Cam, vestiu o figurino rabiscado pelo racismo.

Creio que, se Edson tivesse vestido o exoesqueleto de Ali, como o Pantera Negra, veríamos Dener, Juari, Edilson, Robinho e Neymar denunciando o racismo e as relações conflituosas com o mundo segregador, como vemos LeBron James, astro do basquete, fazer com frequência. Edson se calou sobre o racismo. Parecia que não era com ele quando falava sobre o aniquilamento do negro no país. Era a narrativa da meritocracia em um país desigual, que impede o mérito, e transforma tudo em privilégios. Casou com mulheres brancas e loiras, como os jovens milionários jogadores negros de hoje, e com uma nipodescendente. Hoje sabemos, graças, entre outras e outros, a bell hooks [assim mesmo, em minúsculas] que o amor tem cor!

Leia também: ‘Pelé: vida, polêmicas e reinado do único atleta a vencer três Copas’

A pisada na bola mais perfeita foi o não reconhecimento de sua filha negra, Sandra Regina Machado [Arantes do Nascimento], nascida em 1964 e que morreu precocemente aos 42 anos. A mãe, Anísia Machado, empregada doméstica de Edson, disse que ele era o pai. Sandra, também. Assim como a Justiça e a ciência. Turrão, Edson negou por mais de três vezes ser o pai. Crime supremo para o homem negro, que Edson cometeu (entende?!!!): a irresponsabilidade paterna, gestada nos escombros da imagem do “negro escravizado reprodutor”, inventada pela desumanização escravagista.

Complexo, contraditório e errático, como todos os avatares humanizados, Pelé é três em um, como imaginou o geográfico-baiano-negro Milton Santos sobre globalização: ele é o perverso eugenista Edson Arantes do Nascimento, que negou a filha negra; ele é o rei do futebol e melhor atleta do século passado, a fabulação Pelé, o negro genial lido pela branquitude como “o negro de alma branca”; ele é a infinita imagem de beleza negra enxergada pelas crianças pretas e pardas que vivem nas periferias das possibilidades da humanidade sonhada e desejada. Três em um: perversidade, fabulação e possibilidades. Tudo junto e misturado.

Agora, sem Pelé, não quero pensar nas idiossincrasias que o atravessaram. Vou ligar a TV e zapear a rede. Ver, pela enésima vez, Pelé desfilando, tal qual um mestre-sala, sua negra majestade no estádio Jalisco, na belíssima cidade de Guadalajara, no México ocidental. Sei bem que meus colegas físicos insistem na impossibilidade de viajar no tempo, mas eu consigo voltar ao ano de 1970, em 17 de junho, quando no final do jogo Tostão pega a bola pela esquerda e toca para Pelé que, na meia lua da grande área, como um capoeira, insinua sair pela direita com a bola dominada, mas a deixa passar e sai pela esquerda, desorientando “Mazurka”. Depois de contornar o goleiro uruguaio, sem olhar para o gol, vira o corpo e chuta. O tempo desacelera. A bola desvia do gol, caprichosamente, quicando alegre. Uhhhhhh! Nunca aceitei esse não-gol!

Como lembra um oriki, fragmento de um longo texto oral, iorubá, povo da África Ocidental, que inundou o Brasil com suas narrativas inventivas desde o Recôncavo Baiano (eles crêem na reversibilidade do tempo), Pelé marcou ontem, naquele jogo no Jalisco, o gol com a bola que chutou hoje ao se tornar lenda! Obrigado, Pelé.

Reprodução: Jornal da Unesp

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