Por: Lígia Batista, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco.
Hoje, dia 5 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, mais conhecida como a “ADPF das Favelas”. Essa é uma ação judicial proposta por movimentos sociais da periferia e organizações da sociedade civil para o enfrentamento à letalidade policial no Rio de Janeiro que vitimiza principalmente jovens negros e periféricos.
Um dia antes de ser assassinada, Marielle questionou: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”. A luta por justiça racial e pelo direito à vida foram partes centrais da trajetória de Marielle enquanto mulher negra favelada, defensora de direitos humanos e vereadora socialista. Ela começou a atuar politicamente aos 20 anos, após perder uma amiga numa troca de tiros. Ao longo de sua trajetória, Marielle lutou junto a muitas mães de favelas por justiça pelos filhos delas. Em sua atuação política e acadêmica, ela denunciou que a escolha da atuação feita pelo Estado nas favelas e periferias seguia uma lógica racista, e que, portanto, não era centrada na prerrogativa da garantia de direitos e do respeito à vida.
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A violência policial nas favelas do Rio de Janeiro é um problema persistente e se manifesta de diversas formas, como operações policiais que resultam em mortes de inúmeras pessoas sem qualquer relação com o crime, por vezes crianças, que são tratadas pelas autoridades como meros danos colaterais. Em um país democrático, é inadmissível que o direito à vida não seja efetivado para todas as pessoas de igual maneira.
Além das lesões corporais e óbitos ocasionadas pelas operações, os moradores das favelas fluminenses sofrem com outros efeitos dessa política de insegurança pública, como a suspensão de serviços de saúde pública e de aulas nas escolas, isto é, para além da violação do direito à vida, as operações policiais nas favelas também violam o direito à educação de crianças e jovens, cujos futuros são interrompidos pela violência do Estado. Como podemos falar em democracia em territórios nos quais casas são alvejadas por granadas jogadas de drone, e pais e mães, desesperados, tentam proteger suas crianças em meio a incursões policiais nas favelas?
A dura realidade é que a violência contra os corpos negros e periféricos é banalizada e o cotidiano dessa população é de violação massiva a direitos fundamentais. Ressaltamos que no Brasil, não há uma política de reparação aos familiares e vítimas de violência do Estado que garanta investigação independente, participação efetiva nas investigações, indenização e apoio psicológico contínuo.
Diante da persistência da letalidade policial ao longo de décadas, as crescentes taxas de mortes provocadas por operações policiais são o fundamento fático para a APDF das Favelas. Em termos jurídicos, esse é um processo estrutural que visa a superação de um estado de coisas inconstitucional relacionado a gravíssimas violações desses grupos socialmente vulnerabilizados.
Lembramos, por fim, que esse é um momento histórico: é a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal enfrenta em um processo estrutural a violência policial no Brasil, inclusive nas suas dimensões de racismo institucional. Por isso, esperamos que o STF, nessa fase de avaliação do cumprimento das medidas determinadas ao Estado do Rio de Janeiro, avance na consolidação e aprofundamento de medidas já determinadas para o enfrentamento efetivo da violência letal produzida pela polícia. Dessa forma, continuamos nos somamos às vozes de diversas mães e familiares de vítimas para exigir que o Estado garanta, dentre outros pontos:
- Plano efetivo de redução da letalidade policial para priorizar à proteção da vida e garantir a continuidade de serviços públicos essenciais, como saúde e educação;
- Mecanismos efetivos de controle externo da atividade policial;
- Autonomia das perícias, que decorre de uma decisão específica da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Favela Nova Brasília e Honorato, cujo cumprimento é obrigatório.
Marielle acreditava que é preciso uma profunda reforma estrutural que combata a militarização, a ocupação militar dos territórios periféricos e o consequente superencarceramento, enquanto principais ferramentas da política pública de segurança. Levamos adiante esse legado para que possamos falar em democracia para todas as pessoas, para que todas as crianças e jovens das periferias tenham direito à vida. Nós, do Instituto Marielle Franco continuaremos mobilizadas/os e vigilantes nesta luta por justiça racial!