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Afrotransfeminismo e a necessidade de quilombos de afeto para travestis negras brasileiras

25 de julho de 2018

Maria Clara Araújo fala sobre transfobia, afeto, amor e expõe seus anseios como mulher negra transexual para a criação de políticas restaurativas de humanidade

Texto / Maria Clara Araújo
Imagem / Facebook / Maria Clara Araújo dos Passos

Depois de muito ter escrito sobre questões afetivas que giram – e machucam – travestis e mulheres trans brasileiras, entendendo que ocupamos um lugar que, historicamente, é atravessado por violências desumanizantes, ainda não pressuponho ter esgotado, nem pretendo, esse eixo de discussão e de vida.

Por isto, agora partindo de uma ótica de repensar novamente nossas interações afetivas, assim como, talvez, até chegando a contrapor outros escritos meus, neste ensaio não me debruçarei a respeito do que nos leva ter uma vida ceifada da possibilidade de viver o amor, desenterrando violências e procurando algozes.

Este ensaio não pretende expor essas circunstâncias, mas sim esboçar políticas coletivas de restauração. Pretendo tentar, mesmo minimamente, esmiuçar qual a importância de uma rede de afeto afrotransfeminista e quilombola nas nossas vidas enquanto travestis e mulheres trans negras, assim como tentar idealizar possibilidades de articulações afetivas trans-centradas nas quais buscamos nos construir umas com as outras.

Desumanização colonial

De início, acho importante reiterar como “Vivendo de Amor”, da bell hooks, é um divisor de águas em minha vida. Afinal, foi a partir da leitura desse ensaio que pude, como ela mesma coloca, entender minhas próprias necessidades quanto a querer e merecer sentir o amor em minha vida.

Segundo hooks, embora tenhamos sido, enquanto feminilidades negras, construídas para negar a nossa própria necessidade de sentir o amor, em um movimento contrário, será a partir do reconhecimento desse sentimento vital que poderemos construir políticas de autoamor e de trocas, em uma postura que busca descolonizar esses lugares, ao lado dos nossos iguais – irmãs e irmãos negros.

Sendo uma travesti negra brasileira, vivendo em uma nação que aparece liderando rankings de mortes de pessoas trans e da população negra, ambos sendo considerados genocídios em exercício, não é difícil entender como o meu corpo não é reconhecido enquanto quem pode receber afetos. Na verdade, a mim e às minhas iguais, nesta nação, tem sido vivida por anos apenas a violência de ordem colonial, que nos nega direitos, apaga nossos conhecimentos e nos subclassifica dentro de hierarquia que pretende humanizar alguns em detrimento da desumanização de outros.

Esta desumanização é fruto de uma complexa ordem – desumanização nenhuma é um destino dado, como já coloca Paulo Freire em “Pedagogia do Oprimido” -, que ceifa quaisquer possibilidades reais de existência com dignidade para as travestis que vivem no Brasil. Tendo sido expulsas dos processos de escolarização, não aceitas no mercado de trabalho e abandonadas por suas famílias, nossas histórias são compartilhadas, assim como Luiza Bairros argumentou em seu texto “Orfeu e Poder: Uma Perspectiva Afro-Americana sobre a Política Racial no Brasil”, ao falar das experiências vividas pelas mulheres negras diásporicas.

A precarização em nossas vidas é uma das engrenagens mais importantes do projeto de desumanização que travestis negras brasileiras vivenciam. Afinal, ao termos consciência que só temos vivenciado violências, impossibilitando nossa plena inserção nos espaços, o que está marcado na pele é uma tentativa reiterada de nos fazer sentir que não devemos compartilhar dos mesmos espaços e do conforto gozado pela branquitude cisgênera.

Existe um distanciamento que faz a população de nossa nação não conviver conosco. Coloco dessa forma, em uma conotação de “distância”, por acreditar que os brasileiros são instruídos a criar barreiras que impossibilitem quaisquer interações conosco se não a que tiver sentido de violência.

Direito à família e afetos

Eles não estudam ou trabalham conosco, e não fazemos parte de suas famílias. Esse afastamento compulsório faz nossas vivências serem marcadas, majoritariamente, pela convivência com outras travestis, mas não em um sentido de companheirismo. Nossa convivência entre iguais é marcada pela competitividade, já que estamos, segundo os dados da ANTRA, 90% no ramo da prostituição. Essa mercantilização do nosso corpo e da nossa existência, para a realização dos prazeres – entendidos como obscuros e errados pelos(as) brasileiros(as) – dificulta, para além de outras coisas, uma postura de troca e de fortalecimento entre as próprias travestis negras.

Não bastasse a desumanização coletiva, é articulado também um mecanismo que nos impede de enxergarmos confiança e cumplicidade umas com as outras. E é sobre a tentativa de reverter esse processo que esse texto busca, mesmo de maneira simplista, chamar a atenção a partir da compreensão do afrotransfeminismo enquanto experiência quilombola entre travestis e mulheres trans negras.

A desumanização, entre diversas formas, se dá também na sensação de estarmos sozinhas no mundo. São frequentes relatos de travestis que se veem desamparadas, como se não existisse para nós algum tipo de ponto de alicerce, em que podemos demonstrar algum tipo de vulnerabilidade.

Esta realidade concreta de abandono faz travestis – principalmente, as negras – absorverem que o sentimento de vulnerabilidade e a demonstração de fragilidade são aspectos que nos colocam em posição de perigo.

Afinal, travesti frágil é travesti morta. Em um país onde nossos corpos são arrastados, mutilados, queimados, estrangulados e decapitados, nós não podemos demonstrar, minimamente, qualquer sentimento que não seja o bélico e que nos afaste da posição de defesa iminente. Isso resultou em uma comunidade que não só aceitou a condição de não vivenciar o afeto, como também criou a percepção de que nós precisamos lidar com nossas mazelas sozinhas, sem sequer poder sonhar com um ombro no qual possamos depositar algum tipo de lamentação ou busca por proteção e restauração.

A falta de afeto em nossas vidas nos tornou cães solitários. Nós choramos para nós mesmas, estancamos nossas próprias feridas e naturalizamos nossa condição de sozinhas em um mundo que está inteiro contra nossa existência. Por esse motivo, aqui escrevo sobre a necessidade de discussão sobre políticas restaurativas para travestis em perspectiva afetiva que se materializa em nossos encontros enquanto afrotransfeministas. O que acarretaria se travestis pudessem não mais se ver sozinhas, mas como possuidoras de uma rede de apoio? Quantas angústias seriam saradas em nossas vidas se, ao menos, tivéssemos a possibilidade básica de ter alguém para nos escutar?

Imagem: Facebook / Maria Clara Araújo dos Passos

A transfobia é um vício branco

Ano passado, em 20 de novembro, estive na Aparelha Luzia, quilombo urbano construído no Centro de São Paulo por Erica Malunguinho. Em um momento da festa – afinal, era também o aniversário da Erica –, ela ecoou um dos discursos mais fortes que já ouvi em perspectiva antirracista e antitransfóbica.

Erica, pontual, afirmou que a transfobia era um vício branco e que para vivermos em quilombo, precisaríamos acabar com todos os vícios brancos – o racismo, o machismo e a lgbtfobia – dos nossos espaços. Para ela, e a partir da minha própria compreensão, para pensarmos em quilombo e imaginarmos pessoas negras desfrutando de uma vida em coletividade, é necessário, antes, haver reflexão profunda sobre como os processos coloniais – brancos – nos afetaram de maneira que inculcamos atos que podem até desumanizar nossos iguais e outros irmãos(as) negros(as).

É importante ressaltar como escuta e fala estão ligadas a processos de poder, logo, de humanização e desumanização. Para eu, travesti negra, ser escutada, é preciso antes a pessoa reconhecer minha humanidade e que existe relevância em se deixar ouvir o que tenho a dizer. Em um país onde se acredita que travestis não sangram, nossa fala, que muitas vezes vem em tom de clamor, é calada, tal como na imagem da Escrava Anástacia no texto “A Máscara”, de Grada Kilomba, primeiro capítulo do seu livro “Plantation Memories”.

Quilombo afrotransfeminista

Se estamos, a partir de um projeto afrotransfeminista e interseccional de mundo, desenhando um novo marco civilizatório, é preciso ser devidamente discutida a necessidade de possibilidades reais de trocas de afeto, fortalecimento e companheirismo no interior de grupos que estão sendo marginalizados por décadas.

Falo em políticas restaurativas, pois foi a partir da troca e da convivência com outras travestis negras quando colocamos como meta crescermos juntas e me vi, pela primeira vez, compreendida enquanto sujeito. Não mais como objeto de fetiche ou objeto de estudo. Sujeito!

Conviver com outras travestis negras, criando e possibilitando nossas trocas a partir de uma tentativa de experiência afrotransfeminista, logo, quilombola, fez podermos traçar estratégias diárias que agora se afastavam de uma conotação de “me ensina a sobreviver?”. Agora, nós traçamos, juntas, nossas existências – e existências plenas. Existências enquanto sujeitos que conhecem o que o afeto pode agregar em nossas vidas.

Penso neste breve ensaio como nos sentiríamos se conseguíssemos enxergar a potencialidade de se ver umas nas outras a partir do ato de compartilhar vivências.

Anseio por poder visualizar nossa realidade sendo pautada em uma esfera que torna possível a convivência de travestis negras vivendo quilombos de afeto onde, juntas, buscaremos agregar positivamente na vida de umas às outras, permitindo nosso corpo e alma sentirem o privilégio do bem-estar.

Para além disso, concluo afirmando que sonho uma realidade na qual nossas vidas não mais sejam marcadas pela triste realidade das ruas escuras brasileiras, mas sim por afetos que nos influenciem a questionar lugares desumanizados que insistem em nos colocar. Desejo um afrotransfeminismo que articule políticas restaurativas, no qual travestis negras irão viver em quilombos de afetos no terceiro mundo.

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