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Ancestralidade e gênero: fonte de conhecimento e construção de identidade | Parte 2

4 de fevereiro de 2019

Nossa história está baseada na ótica e ponto de vista dos nossos ancestrais ou daqueles que os submeteram aos processos de escravidão, colonização e colonialismo?

Texto / Luanda Ribeiro do Nascimento
Foto / Reprodução

Em uma série especial, o Alma Preta traz três textos da cientista social e pesquisadora Luanda Ribeiro do Nascimento que discutem sobre as questões da ancestralidade e gênero. Neste segundo texto, a autora retoma conceitos de autores africanos para explicar como a preocupação com a retratação da “verdade” ancestral demonstra o compromisso com a manutenção dos conhecimentos e sabedoria das comunidades africanas ao longo das gerações.

A primeira parte do texto você pode conferir aqui

Ancestralidade como fonte de conhecimento e agência

A ancestralidade se apresenta muito mais como uma orientação genealógica (de preocupação com a origem) ao invés de uma orientação cronológica (de preocupação com a linearidade temporal contemporânea ocidental). Aqui há assim mais um traço diferencial cultural entre o berço civilizacional setentrional ou ocidental e o berço civilizacional meridional ou africano. Ou seja, os berços civilizacionais diversos tratam a sua historicidade de acordo com seus valores e princípios unitários culturais divergentes.

Para os povos africanos ao longo do tempo a orientação para o registro da memória coletiva por transmissão oral iniciática e não-iniciática é uma constante observável desde Kemet. Neste sentido é importante perceber como mesmo numa sociedade da complexidade organizacional de Kemet (que abrangia cerca de 42 nommos, ou autarquias locais segundo Molefi Kete Asante, as quais se é possível atribuir que fossem referentes à diversidade étnica dos povos africanos já desde a Antiguidade que segue-se até hoje) a oralidade e a sacralidade da palavra era algo central na passagem de conhecimento, uma vez que não era permitido que se escrevessem os ensinamentos como forma de passá-los à diante para não-iniciados como relatado no livro O Legado Roubado de George G. M. James.

Assim sendo, o que Amadou Hampatê Ba traz no texto do capítulo “Tradição Viva” presente no volume I da coletânea História Geral da África a respeito das funções sociais dos guardadores da memória coletiva de alguns povos tradicionais da África oeste poderia facilmente ser interpretado como uma ratificação da continuidade de um dos traços culturais do berço civilizacional setentrional, uma vez que o cuidado com a curadoria das estórias dos reinados, famílias e genealogia das etnias é similar ao processo iniciatório kemético antigo. A preocupação com a retratação da “verdade” ancestral demonstra o compromisso com a manutenção dos conhecimentos e sabedoria das comunidades africanas ao longo das gerações.

Quando hoje vanguardas ocidentais já assumem que inovação é sempre remix vemos que a força da curadoria da memória africana é muito provavelmente o que nos manteve vivos na Diáspora, a despeito de mais de 500 anos de opressão.

A cultura é por isso nosso sistema imunológico, nossa memória ancestral que nos permite seguir recriando os aprendizados e legados da ancestralidade aonde quer que vamos ou para onde sejamos levados.

Somos desta forma, Sankofa, a ciclicidade que não repete nem vive no passado, mas o atualiza enquanto insumo para apontar a todo momento alternativas de futuro autônomo.

A transmissão oral de conhecimentos para a manutenção da vida está diretamente conectada ao respeito e compreensão da ancestralidade como legado imaterial sagrado e inigualável dos povos africanos. Ou seja, o acúmulo milenar de experiências e saberes sobre a solução de problemas humanos que nos são impostos desde o nascimento da Humanidade, já que somos o povo original. O homo sapiens que se diferenciou das demais espécies de hominídeos pela sua capacidade de aprender com experiências passadas é um epíteto da própria africanidade e a africanidade seu prólogo. Somos um povo cujo repertório coletivo traz consigo a força vital de todos aqueles que pisaram a Terra antes de nós a tomando emprestada de nós (suas futuras gerações) conforme diz provérbio africano, força que anima nossa agência e construção de identidade na contemporaneidade.

Na Diáspora é o que nos recentra de volta as nossas próprias referências histórico-culturais, nos devolve a dignidade humana e o protagonismo identitário. A vivência cultural africana permanece não só teórica mas objetivamente viva no nosso estilo de vida, e inclusive compondo majoritariamente as referências populares da dita “cultura brasileira”. Mas ao anunciá-la de forma sistemática como parte de uma genealogia com referenciamento nominal desde a Antiguidade, ela sai da sombra para o holofote, do tácito para o explícito, e da subalternidade para a centralidade das nossas consciências ativas. Ela se torna finalmente nossa nova localização psicológica, ponto de vista e ótica na produção e transmissão de conhecimento assim como da construção da nossa identidade.

Por fim, ela reequilibra as relações e comunicação entre os diferentes e as diferenças ajudando-nos a caminhar para um mundo sem dominação da ótica de uns sobre as de outros, ou de outros sobre as de uns. É o restabelecimento de Maat, a antiga ética africana coletiva de equilíbrio, temperança, virtude e bem comum expressa já outras vezes neste texto, mas jamais sendo demais reiterá-la e convocá-la para este projeto de renascimento africano.

Luanda Ribeiro do Nascimento é cientista social formada pela PUC-Rio e pesquisadora independente de Estudos Africana.

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