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O que a diretora da Vogue tem a ver com a patroa da minha mãe?

11 de fevereiro de 2019

Queria dizer que temos que repensar o quanto essa festa é colocada todos os dias na nossa cara

Texto / Yane Mendes
Imagem / Reprodução

Eu vi o lance da festa. Daí eu comecei a refletir…

O Brasil é um país que todo dia você – que é preta – se fode ou algum amigx seu se fode. É um país onde a gente comemora cada dia como se fosse o nosso aniversário porque sabe que morre toda hora e que a todo momento, e rapidamente, nossa vida passa a ser número. Sempre tem alguém para lembrar que a gente morre muito. Seja numa palestra, nos debates, nas ongs, jornais…

A gente acorda e quando vai para a rede social vê uma mensagem “ninguém solta a mão de ninguém”. Sim, eu tenho ranço dessa frase. E com força! Porque logo a gente vê as mãos que tão soltas por aí, faz tempo.

Eu vi as fotos dessa festa e saquei os comentários da Joyce Fernandes, minha diva rainha que me ajuda todo dia a enfrentar a rua, na música, na fala, na existência. A Preta-Rara também falou sobre esta festa.
Caraí, a gente quer dizer para fora que não se surpreende com estas paradas, mas o peito aperta e o olho logo enche de lágrimas. Rapidamente mistura a dor com muito ódio dessa merda de sociedade que todo dia a gente, povo preto e da favela, vivemos.

A gente contribui, cada um no seu corre, para melhorar esse mundo. E aí quando nos deparamos com uma imagem dessa a gente diz: “que porra eu to fazendo?”.

Por mais que nos atos feministas a gente esteja na rua gritando “nenhum passo atrás” a gente vê uma cena dessa e diz: “sim, estamos dando vários passos para trás. E o que fazer com isso?” Gritar, apenas, “nenhum passo atrás” não vai resolver, né?

Ver as fotos da festa é se ver naquelas mulheres negras que poderiam ser eu e as minhas. Já que emprego tá difícil, servir uma sinhá a gente já faz no dia a dia.

O lance da festa é que fizeram de um jeito que não era válido fazer aquilo apenas internamente, queriam expor que era aquilo mesmo. O poder dos brancos em esfregar na nossa cara que eles não têm limites e que podem TUDO.

Lembrei da patroa de minha mãe, que não é tão rica, igual a diretora da Vogue. Na real, acho que ela foi nomeada classe média por ter carro, pagar para alguém limpar o banheiro/casa dela, pagar para alguém criar os filhos e morar em Piedade, um bairro aqui da cidade.

Mas vamos lá. Minha mãe não é uma mulher negra. Mas eu senti essa imagem pela minha cor e lembrei das várias sinhás que já passaram na minha vida e na vida de minha mãe.

Lembrei das histórias que escutava de mainha. Porque assim, se tua mãe te conta ou contava histórias de ninar, a minha chegava e contava história meio que desabafando comigo o que ela vivenciada no dia a dia na casa das patroas.

Minha mãe não queria jogar o peso de nada em mim. Talvez jamais imaginávamos que um dia eu iria ter entendimento dessa porra desse sistema. E o quanto dói entender. Contar aquelas histórias, onde criavam laços de intimidade e amizade com a minha mãe, me fez hoje ter admiração por essa mulher foda e querer muita JUSTIÇA.

Sim, porque no meu trampo de cinema, na minha existência, no ar que eu respiro… EU QUERO JUSTIÇA, PORRA!

Quero que vocês se incomodem! Eu trago comigo muita força de mainha. Que por cima ainda diz até hoje que não é para eu guardar mágoas dessas histórias. Sim, a minha mãe normatizou porque para ela “patrão é assim mesmo”.

E por mais que eu tente explicar, existe um pensamento que foi construído pelas vezes que ela já se fudeu na mão dessa galera. Já que desde dos 12 anos ela trabalha na casa dos outros.

Eu me recuso a chamar casa de família porque, na real, a minha mãe teve que abrir mão da família muitas vezes para estar na casa dos outros. Parece doido, mas quantas mulheres tem na agenda a reunião do filho na escola? Ou apresentação daquele teatro que você não pode faltar para ir lá ver e tirar foto?

Muitas vezes a minha mãe ela não podia. Primeiro, quem fazia a agenda dela era a necessidade. E outra que para a patroa dela não era prioridade a reunião de escola da filha da minha mãe. “Manda outra pessoa ir”, dizia.

Não estou lamentando, carai. Estou aqui dizendo que muitas vezes quando estou nos movimentos feministas eu lembro de tudo isso. E penso este feminismo que, querendo ou não, precisa estar reconhecendo mulheres iguais a minha mãe, que é a que mais têm dentro das favelas.

Seguiremos…

Quando meu irmão nasceu, eu tinha 12 anos. Lembro da minha mãe dizendo que não iria abrir mão de reunião de escola, apresentação, nem de nada. Que ia estar mais presente no dia a dia do meu irmão. Ninguém precisou cobrar porque além de dar conta de tudo, ela mesmo se cobrou isso. E determinou. Nos primeiros anos não foram assim.

Mas digo que hoje a minha mãe não deixa de ir no médico por causa de uma faxina. Mainha é uma das pessoas mais engraçadas que alguém pode conhecer. Ela diz mermo assim hoje: “se não quiser no dia que eu posso fazer faxina, que elas se lasquem!”. Ver minha mãe dizendo isso é foda! Comemoro muito mais do que qualquer outra coisa com destaque mundial no calendário feminista.

Queria dizer que temos que repensar o quanto essa festa é colocada todos os dias na nossa cara. Quantas diretoras das Vogues estão ao nosso redor? Às vezes no nosso mesmo espaço! Não vamos deixar PASSAR mais NADA .

Não vamos ficar aguentando tudo isso. Mas vamos ver o que podemos fazer no dia a dia. Tu pode ser militante, mas na hora do teu almoço, tu repara como estão sendo tratadas as meninxs que te servem?
Tu, às vezes, será que não senta na cadeira aí da festa? Só que de uma maneira protegida, porque ninguém tirou foto e tuas escravas não estão vestidas para não ficar explícito teu lugar de sinhá/senhorzinho?

Será que, agora falando dos machos, tu que tá PASSADO com essa festa não reproduz o que os senhorzinhos faziam? Que era deitar com a preta, mas na rua estar com a branca. E muitas vezes abandona elas cheia de meninxs e nem a mixaria da pensão tu dá. Porque tu pode abandonar de boinha, que a sociedade entende.

Será que precisa ser a diretora da Vogue para reproduzir tudo isso? Vamos nos olhar! Vamos melhorar porque não vamos distanciar o que está tão próximo. Enquanto escrevo isso lembro de várias histórias de amigxs. Lembro das minhas histórias, de minha família e de várias outras pessoas que, às vezes, na rua eu conheço.

Será que não têm várias festas rolando por aí o tempo todo?

Talvez, sim.

Eu sou Yane Mendes, filha de Ivanice Maria da Silva e Denilson Mendes de Araújo.

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