A maneira como as pessoas me olhavam me dizia muito sobre o que eu representava naquele espaço, a transgressão, a quebra de qualquer paradigma que antes já estivesse sido estabelecido para aquelas pessoas naquele lugar
Texto: Marcelo Morais | Imagem: Tiago Celestino
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Muitas vezes me perguntei o quanto as pessoas conhecem das tradições de matriz africana. Sempre soube que era pouco, mas precisei de 21 dias envolto à uma atmosfera de cuidados, carinho e muita felicidade, que me preparou para o nascimento do meu
sagrado, para que a realidade viesse à tona.
Pela minha tradição no movimento religioso, infelizmente, já havia tido contato com uma série de violações relacionadas ao racismo religioso, como a expulsão de lideranças religiosas de matriz africana de comunidade e a destruição de terreiros, fato que ficou muito comum na última década.
Foi dia 22 de dezembro de 2019, um domingo, a data escolhida por Oxalá para sair na sala e se apresentar ao mundo depois de 21 dias recolhido junto à minha comunidade religiosa. Foi o dia mais calmo que já vivenciei, uma mistura de tempo correndo ligeiro, mas de uma forma serena, calma, tranquila.
Logo, já era segunda-feira e, depois dos últimos atos, chegou a hora e ir para casa. Neste dia, chovia torrencialmente, parecia até que os orixás estavam lavando o mundo para que o mais novo yaò o habitasse. Ir para casa, naquele momento, simbolizava sair de toda aquela esfera de cuidados que estava envolto e encarar o mundo – mas agora de uma forma diferente.
Após o período de recolhimento, tive que passar por mais 90 dias de preceito, com algumas restrições, vestindo roupas brancas e carregando em mim os símbolos da minha tradição, com a cabeça coberta, fios de contas e meu mokan no pescoço, objetos os quais me orgulho de ter o privilégio de carregar junto a mim.
Sair do terreiro naquela segunda-feira era um sinal de que teria que encarar não só o mundo, mas todas as pessoas, que, como disse, não sabia exatamente o quanto elas tinham conhecimento sobre as tradições de matriz africana. O meu receio era que as pessoas soubessem pouco o suficiente para serem tomadas pelo ódio, estupidez ou violação do meu corpo.
O preceito em casa foi cheio de surpresas, respeito, carinho e acolhimento de pessoas próximas, que, na maior parte das vezes, não sabiam como lidar, mas sempre muito dispostas e vigilantes para aprender sobre essa nova forma de se relacionar.
Os dias foram passando e se aproximava o momento do retorno das aulas na universidade. Isso era o que mais me angustiava: ter que passar meu preceito dentro de um espaço cujo cotidiano elitista e muitas vezes intimidador eu já havia vivenciado, mas desta vez sem saber se as pessoas teriam delicadeza para receber alguém que acabara de passar por um dos processos mais bonitos de conexão com o sagrado, de ressignificação da vida, de contato com a natureza e de afirmação da sua identidade. Alguém que acabou de nascer para a sua tradição.
Há momentos em que nos frustramos diante da tentativa de passar despercebidos e, quanto menos tentamos chamar atenção, parece que os olhares se voltam para nós. Fico pensando o quanto é incrível que nos momentos em que estamos expondo nossa versão mais frágil é que conseguimos passar por algumas experiências que nos rendem maior aprendizado.
Enfim o dia chegou e lá estava eu no meu primeiro dia de aula do semestre e não sabia o que era mais desconfortável: se a percepção de que as pessoas com quem tinha contato eram muito jovens e possivelmente ainda não tinham a sensibilidade de lidar com algumas delicadezas, ou mesmo o ambiente ou, ainda, os professores, mas no fundo já sabia o que poderia vir pela frente. Minha estratégia foi chegar 15 minutos atrasado na aula, assim não teria que socializar com as pessoas, nem ter que ficar respondendo as perguntas sobre o meu cabelo, as roupas brancas, a cabeça coberta, os fios de conta no pescoço. Sem deixar de mencionar o fato de não poder olhar nos olhos das pessoas, abraçar ou promover qualquer contato mais próximo, restrições necessárias diante do preceito religioso que ainda estava guardando.
Foto: Acervo Pessoal/Marcelo Morais
Por decisão própria não vou relatar aqui as ofensas e ações mais agressivas na qual fui submetido nesse processo de cumprimento de preceito, a ideia desse texto é trazer reflexões sobre as formas como pessoas e símbolos são recebidos em uma sociedade que está apartada das tradições de matriz africana.
A maneira como as pessoas me olhavam me dizia muito sobre o que eu representava naquele espaço, a transgressão, a quebra de qualquer paradigma que antes já estivesse sido estabelecido para aquelas pessoas naquele lugar.
A forma como algumas pessoas me receberam me fez refletir sobre a sutileza e os cuidados que elas têm com as expressões de fé. Uma das professoras, que é uma das referência nos meus estudos, quando me viu pela primeira vez, naquele semestre, me disse “como você está diferente, será que é o cabelo?”. Ao meu ver ela, mostrou de forma muito sutil que tinha notado que eu havia passado por algum processo e dando margem para que eu falasse ou não sobre o processo que teria passado.
Em um outro momento um professor muito conceituado dentro do meio acadêmico ficou visivelmente chocado quando o interpelei nas escadas do prédio principal da universidade e o lembrei que teríamos uma reunião em algumas horas, ao passo que durante a reunião afirmou não ter me reconhecido e logo sacou da pergunta: “Você é pai de santo?”, demonstrando que tinha algum conhecimento sobre aqueles símbolos que eu carregava, mas que não detinha domínio sobre o processo pelo qual eu passei.
Uma outra professora, após ter me “estudado”, perguntou: “Me explica a sua existência?”, após entrar na sala de aula depois de um intervalo. Essa pergunta foi uma das que mais me marcou e me fez refletir sobre o que estava fazendo ali e, até mesmo, sobre qual seria a minha “existência” naquele espaço. Iorubana , de matriz africana – hoje sei que essa é a resposta certa. Encontrei a minha existência e minha ancestralidade no candomblé, onde tive contato com meu sagrado, com as forças que me completam, com o que me deixa pleno.
Uma das passagens que não poderia deixar de relatar aqui foi a forma como uma senhora me abordou na fila do elevador. Eu estava com algumas amigas e amigo, na fila do elevador, quando a senhora, que não estava próxima da gente, ficou visivelmente incomodada com a minha presença naquele ambiente, após alguns segundo me olhando, de longe, a senhora veio até mim, apontou o dedo para os meus fios de contas e com uma voz de espanto com tons de desprezo disse: “O que é isso, umbanda?”. Eu rapidamente respondi: “Não, são fios de contas”, deixando a pensativa. O que mais me marcou nesse episódio não foi o fato da senhora, que poderia ter se mantido no lugar dela, me interpelar daquela forma grosseira, mas sim a forma como minhas amigas e amigo, que ficaram chocadas com a atitude, rapidamente me tiraram daquela situação, indo todos em direção das escadas e optando por esperar um outro elevador em outro andar.
Durante os 90 dias de preceito muitas coisas me ocorreram e uma das referências que me guiaram foi o discurso de Sojourner Truth, “E eu não sou uma mulher?”, que no ano 1851, durante uma plenária com pessoas brancas, questionava se o fato de ela ser negra invalidava o fato de ser mulher. Por muitos momentos fiquei pensando meu lugar na Fundação Getúlio Vargas. Eu tenho o direito de estudar aqui? – era essa a questão que vinha à minha mente.
Isso me tomava de forma a questionar se esse teria sido o momento certo para ter nascido para orixá. A falta de referência e o medo da rejeição, até entre meus semelhantes – bolsistas e pessoas negras – esteve sempre presente. Nestes momentos sempre fazia o exercício de retomar a beleza do processo na qual havia passado e relembrar que foram meus ancestrais, que assim como Sojourner Truth, construíram um legado de liberdade da qual eu posso desfrutar, que me deram as respostas para as perguntas que me acompanharam por todo esse percurso. Sei que eu tenho direito de estar naquele espaço e que sou um estudante assim como as outras pessoas que estão na Fundação. Com muitos pontos de divergência entre a minha vivência e a da maioria dos meus colegas, com muitas diferenças de percurso para chegar até aqui e com as inúmeras subjetividades que nos colocam em lugares sociais muito distintos.
A falta de referências e de representatividade nos coloca vulneráveis em espaços como a Fundação Getulio Vargas, mas assim como Sojourner Truth, que nasceu escravizada, conseguiu sua liberdade e trilhou um caminho de muita luta, eu sei que estou nesse caminho para construir referência para outras pessoas, negras e negros de tradição de matriz africana que não conseguem se enxergar na academia, sem referências bibliográficas e pessoais para construir seu legado, pesquisas ou que seja apenas para não se sentirem sozinhas.
Axé e que Oxalá nos faça sempre fortes.
Marcelo Morais é estudante de Administração Pública na Fundação Getulio Vargas (FGV), foca seus estudos em cultura de massa, juventude negra e periferias. É idealizador e diretor geral do Festival BixaNagô, espaço de dialogo e interação entre o mundo das artes e o debate de HIV/AIDS.