Olimpíadas 2024

Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Carne, pólvora, quarta feira de cinzas e uma fagulha de esperança

15 de fevereiro de 2016

Texto: Caroline Amanda Borges / Edição de Imagem: Moska Santana

Vitor Santiago Borges, sobrevivente presente!

 

Dia de cinzas, carnaval

 

Pra me ajudar ninguém

 

 Pra levantar ninguém..

 

…Fui no mais fundo que pude

 

Mergulhado a tantas lágrimas

 

Aqui terra de coveiro

 

Vento guia a virar página

 

Liberdade virá

 

Mano Teko

Antes de iniciar minha reflexão, desejo saudar a velha guarda de cada Escola de Samba, de cada bloco carnavalesco tradicional, saudar com honra e muita gratidão os afoxés, em especial, o Afoxé Filhas de Ganhy-RJ e  as demais manifestações tradicionais da Diáspora Africana nesse território.

Ainda que grata e honrada com o legado e a oportunidade de vivenciar um pedacinho de Afreekah, sinto inquietude na alma e me questiono: Quem de nós tem motivos para estar alegre? Como podemos cantar, dançar e dividir bebidas com aqueles que tramam contra nós o ano inteiro?

Nessa semana, recordei da Chacina do Jardim Rosana-SP, onde 7 homens foram covardemente assassinados incluindo Láercio de Souza Grimas, 33 anos, conhecido no hip hop brasileiro como DJ Lah, do grupo de rap paulistano Conexão do Morro. Após três anos, a chacina do Jardim Rosana vira mais um símbolo da impunidade dos PMs de São Paulo.

Antes de ontem, ouvi 111 tiros no morro da Lagartixa-RJ e contei 5 corpos com mais de 50 perfurações.

Ontem, relembrei as 13 execuções sumárias em Cabula-BA. Ao todo contabilizamos 13 vítimas fatais com mais de 88 tiros. Embora o Ministério Público trabalhe com 12 execuções, é bom ressaltar que uma das vítimas morreu no hospital. Portanto, são 13 e não 12.

Depois me veio a memória dona Carla, que teve seu filho, Alessandro Santos Lima, torturado e assassinado pela RONDESP, horas depois da Chacina em Cabula.

E não posso deixar de mencionar a fagulha de esperança que renasceu. Vitor Santiago Borges!! Sobrevivente do atentado covarde do Exército Brasileiro no Complexo de Favelas da Maré, alvejado pelo fuzil calibre 762 do soldado da incursão de pacificação no dia 12/02/2015. Após ter a perna amputada e o pulmão perfurado, hoje, um ano depois, Vitor se encontra paraplégico sem qualquer apoio do Estado!

Veja abaixo a história de Vitor Santiago:

{youtube}https://www.youtube.com/watch?v=_rKcQubKnuc&feature=youtu.be{/youtube}

Tá tranquilo? Tá favorável?

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, foram registrados 117 homicídios na capital nos primeiros dias do ano. No ano passado, no mesmo período, o total de casos ficou em 116.

No Rio de Janeiro, testemunhamos a expulsão compulsória de milhares de famílias de seus lares.  Além de hospitais fechados, a ausência de vacinas importantes e o relato incessante da irmandade comunicando que a “bala ta comendo” em territórios de maioria negra são silenciados pela mídia golpista.

O Brasil é um grande campo de concentração para negros.  As duas cidades que mais recebem turistas no período de carnaval são as cidades que mais receberam escravizados em todo o período de tráfico no mundo! Certamente cidades túmulos, desrespeitadas e usurpadas de seus sentidos e sentimentos mais profundos.

Castigos impostos aos negros durante o período escravocrata Castigos impostos aos negros durante o período escravocrata

O Pelourinho testemunhou castigos brutais. Os tipos de penitência mais comuns eram mãos cortadas, chibatadas, troncos, argolas, gargalheiras, correntes nos pés e até mesmo permanecer durante dias acordado fazendo a mesma atividade. Assim como o Pelourinho, no Rio de Janeiro, o Cais do Valongo, porto que recebeu mais de 1.000.000 de escravizados, é hoje apartado de sua história pela especulação imobiliária, conduzida pelo projeto de “revitalização” Porto Maravilha, ponta de um projeto higienista.

Essas cidades são sufocadas pela alegria dissimulada de milhares de “gringos” e escravocratas nacionais. Pessoas que desrespeitam, exploram e desdenham da cultura afro o ano todo, mas que em relapso de recalque se veem no direito de acessar nossos espaços mais sagrados.  Essa alegria é alimentada pela nossa miséria e expectativa de migalhas.

 

Não consigo visualizar festa e alegria em Auschwitz. Não imagino descendentes das pessoas que foram torturadas e assassinadas naquele lugar partilhando sua tradição ou alimento e acolhendo torturadores!

 

Relembrar a dor que está na Pelô, saudar a pequena Africa no seio da cidade do Rio de Janeiro é obrigação em África ou em Diáspora! Não podemos permitir que nossos pretos novos sejam silênciados pela euforia nordica esquizofrênica mais uma vez.

 

A cada ano que passa o carnaval vem com mais cheiro de sangue, mais sensação de derrota. A cada ano se torna mais forte a necessidade de se entorpecer mais para “entrar no clima”, para não perceber o ”Black face” ou a fantasia racista que a família “bondosa” colocou na criança negra, ou ainda para ignorar a pele preta dos catadores das latinhas que usamos para “desligar”. Latinhas que com ou sem carnaval têm tido destino incerto nas mãos de uma massa preta. É necessário aspirar orgasmos quíntuplos com venda nos olhos para não enxergar que no mesmo beco que a “gringa” vive o beijo consentido, tem uma criança preta se prostituindo.

Mães e pais não recebem nenhum tipo de auxílio para cuidar dos filhos durante o carnaval em Salvador Foto: Ale Pinheiro

Mães e pais não recebem nenhum tipo de auxílio durante o carnaval em Salvador Foto: Ale Pinheiro

Apontar a falta de unidade ou esboçar descontentamento a partir do lugar de conforto não me parece somar ou demonstrar uma análise mais profunda, sobretudo propositiva, em relação ao que está em jogo, além de nossas próprias vidas. Creio que antes de apontar é necessário avaliar o quanto nós estamos dispostos a dar para nosso povo. Somos capazes de negar o convite astuto das folias que só confundem a nós mesmos?

Há uma constatação: calados estaremos mortos! Não há férias! A questão racial não é para ativistas, nem militantes. A questão racial não é uma questão, mas uma condição. É uma vivência, experiência, uma dor, uma saudade… são os calos no pulso de minha vó, de nossas avós! Teoria, acadêmia, oratória… fuga, jamais saída.

Alvo já nascemos, no “front” sempre estaremos e por isso precisamos saudar os de prática! Apesar de sentir e perceber a navalha cortar mais fundo e de maneira mais sofisticada as raízes que nos liga e nos mantém vivos, apesar de todos que foram levados para longe de nós, existem guerreiras, verdadeiras candaces. Mulheres que nos fazem refletir sobre o significado da luta pela vida negra. Em um universo de diversas outras mães que lutam e se dedicam para manutenção da memória de seus filhos, Irone Santiago, é também um exemplo e uma certeza de que o amor e a sede por justiça não encontram barreiras. Dona Irone é testemunha diária da perversidade da supremacia branca, que na figura do Estado jogou a saúde e a harmonia de sua família no vento e os deixou a própria sorte. Em nome dos direitos e da retomada da agência da vida de seu filho, essa mulher tem movido mundos com muita dignidade.

A proximidade com esta história me torna mais leve e mais densa, mas sem dúvidas muito feliz! Poder celebrar a vida de um sobrevivente é um milagre! Saúdo Vitor Santiago Borges! Saúdo sua potência, seu desejo em viver! Celebro seu renascer! Sou grata por ter a oportunidade de acompanhar cada pequena conquista, cada pequena/grande evolução do seu corpo nessa nova vida!

O sistema quis amputar, apartar e não conseguiu. O povo negro segue marchado pela sua liberdade! Vitor Santiago Borges, sobrevivente presente!

 

No dia em que o morro descer e não for carnaval

 

não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral

 

e cada uma ala da escola será uma quadrilha

 

a evolução já vai ser de guerrilha

 

e a alegoria um tremendo arsenal

 

o tema do enredo vai ser a cidade partida

 

no dia em que o couro comer na avenida

 

se o morro descer e não for carnaval

 

Wilson das Neves

Caroline Amanda Lopes Borges é articuladora nacional da campanha “Reaja ou Será Morta!”. Colaboradora da “Associação de Mulheres de Ação e Reação”,membro do Coletivo Negro Carolina de Jesus (UFRJ).integrante do grupo de pesquisa PET/Conexões de Saberes, Identidades e Diversidade, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Caroline Amanda Lopes Borges é também articuladora nacional do Encontro de Estudantes e Coletivos Universitários Negros, EECUN

Leia Mais

Quer receber nossa newsletter?

Destaques

AudioVisual

Podcast

papo-preto-logo

Cotidiano