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Como é ser negro e brasileiro na Austrália

Empresário e escritor, o brasileiro Guido Melo escreveu sobre sua experiência enquanto homem negro e imigrante no país australiano

21 de agosto de 2019

De acordo com dados de 2016 do Ministério das Relações Exteriores (MRE), mais de três milhões de brasileiros moram fora do país. Desses, cerca de 45 mil vivem na Austrália.

Não existem dados sobre a população afro-brasileira ou afro-latino americana, mas baseado em números de negros não indígenas (1,5% da população), somos cerca de 600 brasileiros negros por aqui.

Tenho a impressão de que esse número ainda é menor e que somos algo em torno de 0,5%. Talvez um pouco mais de 200 brasileiros negros. No Brasil, é normal nesse tipo discussão ouvirmos frases como “minha avó é negra” ou “minha mãe é filha de índia com negro”.

Concordo que, geneticamente falando, esses também seriam afrodescendentes. Contudo, não escrevo para essas pessoas. Se você faz parte desse grupo e é um aliado, meu muito obrigado. Mas, por favor, sente-se no banco do carona.

Caso contrário, procure um dos diversos artigos e vídeos feitos, em sua maioria, por brancos brasileiros que cobrem assuntos sobre a Austrália numa perspectiva eurocêntrica e hétero-normativa.

O meu foco é no povo preto. Que é negro no Brasil e que sente o peso da melanina em suas atividades diárias. É para você que escrevo.

Racismo histórico

O racismo estrutural é uma ferramenta de dominação que vem sendo utilizada por mais de cinco séculos por europeus e seus descendentes. O objetivo é colonizar, destruir e roubar toda a riqueza e cultura produzida por outros povos não brancos ao redor do mundo. Na Austrália não foi diferente.

De acordo com o aclamado historiador autor do livro “Sapiens”, Yuval Noah Harari, o povo indígena local chamado de aborígines pelos colonizadores ingleses chegou aqui um pouco mais de 45 mil anos atrás, originalmente vindos da África.

Aborígine é uma palavra inglesa de origem latina que vem da junção de ab (de), no sentido de proveniência, e origo, no sentido de lugar de nascimento ou origem.

Os primeiros habitantes da Austrália foram brutalmente exterminados após a invasão inglesa em 1888.N ão existem tratados de concessão da terra aos ingleses, o que constitui uma invasão hostil, em alguns casos com extrema crueldade.

Houve um declínio da população de 750 mil para um pouco mais de 100 mil no começo do século XX. Tudo isso ocorreu cerca de 100 anos após o contato inicial com colonizadores europeus.

Uma política racista de assimilação e branqueamento dos povos indígenas foi implementada por aqui com o objetivo de aniquilação da população negra local.
Vale lembrar que até 1967 os primeiros habitantes do país não eram considerados humanos, sendo tratados como fauna e flora, assim como plantas, cangurus e ovelhas, por exemplo.

A Austrália conseguiu oprimir e subjugar os povos indígenas de uma forma tão racista e cruel que o Queensland’s Aboriginal Protection Act, de 1897, foi a fonte de inspiração para a criação de leis que viriam impor o apartheid na África do Sul.

Podemos dizer que, de certa forma, o racismo foi uma das primeiras coisas que a Austrália Branca e seus colonizadores europeus exportaram. Hoje, os povos indígenas e seus descendentes representam cerca de 3,3% da população local e ainda sofrem para terem seus direitos reconhecidos. Assim como no Brasil com os afrodescendentes, que são maioria desproporcional no sistema carcerário e em todos os indicativos de linhas de pobreza.

Na minha opinião, não é possível pensar em raça no país australiano sem tentar entender o racismo estrutural sofrido hoje e no passado pelos povos indígenas.

Chegada na Austrália

Após ter meu visto original de estudante negado por não ter fundos suficientes, cheguei no país no começo de 2002 com um visto de noivado. Lembro que aqui eu não era percebido como uma ameaça para outras pessoas e nem para a Polícia. Isso foi um alívio.

Lembro de pedir um táxi e não ter que dizer para onde vou, de dirigir e nunca ser parado e de ser respeitado em restaurantes e bares. Lembro também de realmente me sentir como um homem.

Eu estava tão fascinado com a aparente ausência de racismo que no começo chamava a Austrália de Disneylândia. Eu consegui um emprego na área de tecnologia da informação e em nenhum momento minha raça foi assunto entre os meus colegas de trabalho.

Senti um alívio também ao alugar meu primeiro apartamento e ter visto meus vizinhos brancos dizendo “bom dia” e (pasmem) sorrindo. Lembro de pensar em nunca mais pisar em solo brasileiro. Minha primeira experiência na Austrália foi realmente libertadora.

No fim de 2017, fui convidado a participar de um projeto para novos escritores. O livro “Growing Up African in Australia”, no qual sou um dos autores, foi lançado em abril de 2019 e tem sido um sucesso de vendas.

São 35 histórias de afrodescendentes e africanos que vivem na Austrália. Infelizmente ainda sem previsão para lançamento no Brasil. Nessa obra, conto minha história desde meu nascimento em Salvador, na Bahia, até a minha transformação de um “neguinho” para um “negro tipo A”, como diria Mano Brown.

Uma vez que fui me encaixando na sociedade local e fui criando uma voz única e nova, fui entendendo meu lugar como negro por aqui. Fiz amizades com outros imigrantes negros da América Latina e do continente africano.

Em 2019, em parceria com outros negros brasileiros, criamos um grupo de suporte chamado “Afro-Resistência Austrália”. Idealizado e liderado por uma mulher negra, é claro! Existem cada vez mais negros brasileiros por aqui e isso nos deixa mais fortes e confiantes.

Ser brasileiro e afrodescendente aqui te traz dores e delícias. Julgo que o mais gritante é a diferença no tratamento que eu recebia no Brasil. Do racismo recreativo, da constante desconfiança e da desumanização.

Aqui na Austrália nem tudo é perfeito, mas logo nos primeiros minutos no país fica evidente que estamos em outra realidade. A impressão que tenho é de que aqui sou respeitado como um indivíduo na maioria das minhas interações diárias.

O racismo não é minha primeira preocupação. Parece pouco, mas isso aumenta minha qualidade de vida de forma imensurável. “Ao estrangeiro não maltratarás, nem o oprimirás; pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito.” – Torah.

Em 2001, eu passei uma temporada em Paris, na França. Notei que lá o racismo institucional tinha outro alvo. Na época, o foco era nos árabes de origens marroquina e argelina.

Fui testemunha de “duras” contra árabes e da perseguição contínua da polícia francesa. Nesse período, meu melhor amigo era um francês de origem argelina, chamado Mustapha. Certa vez, em um desses antigos cybers cafés, ele foi “convidado” a se retirar por não estar acessando um computador pago.

Eu já havia visitado o mesmo lugar com outros convidadxs brancxs e isso nunca tinha sido um problema. Utilizei meu recém adquirido “privilégio” e lutei para que ele ficasse no estabelecimento. O atendente cedeu e ambos ficamos até o fim da minha atividade.

Em pouco tempo notei que eu tinha um privilégio. Isso não significa que racismo contra negros não exista na França, mas que existem outros fatores a serem considerados. Isso também ocorre na Austrália.

É como se o preconceito que seria direcionado para negros fosse absorvido pelos povos indígenas de forma injusta e arbitrária. Ser negro consciente na Austrália é estar atento e ciente disso. Ser afrodescendente aqui é combater essa injustiça com o pequeno privilégio que imigrar para cá pode te trazer.

Outras narrativas

De certa forma, esse artigo está sendo escrito há 18 anos, porém, somente agora tomou corpo físico. Eu precisava falar com os negros brasileiros. Ter meu lugar de voz. Contar minha própria história como sujeito e não como predicado.

Em uma rápida pesquisa você pode encontrar vídeos e textosde brancos brasileiros dizendo que não existe racismo na Austrália. Ou pior, que eles sofreram muito preconceito aqui (xenofobia talvez?!).

Existe um grande número de vídeos focados em dizer que a vida na Austrália é muito difícil, que não é como eles pensavam e que não sabiam que teriam que trabalhar tão duro em funções como garçom e na área de limpeza, por exemplo. Serviços esses muito bem remunerados e que, em alguns casos, pagam em torno de R$ 100 por hora.

Segundo vários desses vídeos, trabalhos físicos nunca haviam sido executados por essas pessoas (geralmente) brancas e de classe média antes de chegarem na Austrália.

É comum ouvir frases como “aqui tive que fazer minha própria cama’”, “na Austrália tive que ganhar meu próprio dinheiro e pagar minhas contas”, “tive que andar de ônibus”, “que saudade de casa e de ter a roupa lavada”.

Tarefas básicas que possivelmente no Brasil eram feitas pela empregada (provavelmente negra) e que sem dúvidas não recebe o que merece. Nada perto dos R$ 100 por hora costumeiros por aqui.

Em muitos casos, a impressão que tenho é que os brancos de classe média no Brasil vivem em um país diferente dos negros brasileiros. Ser negro no Brasil, mesmo que você seja de classe média, é ter uma realidade tão diferente que, uma vez fora do país, somos quase estrangeiros uns aos outros.

Focando no futuro

A Austrália oferece oportunidades de migração para muitos profissionais de nível superior, como enfermeiros e engenheiros. Existe uma lista de profissionais desejados e, uma vez preenchido os pré-requisitos, o céu é o limite.

Eu honestamente adoraria que mais negros brasileiros viessem para cá. Espero que esse artigo sirva de incentivo para futuros candidatos.

Karl Marx afirma em “O Manifesto Comunista” que trabalhadores não têm pátria. Ser descendente de africanos no Brasil é fazer parte de uma diáspora imposta. Na Austrália, eu vivo na diáspora da diáspora. E já que é para ser um forasteiro, pelo menos que me paguem bem.

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