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Como o aborto ilegal criminaliza crianças negras, maiores vítimas de estupro

Pesquisadoras do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) analisam os efeitos que o PL 1904/2024, em tramitação na Câmara dos Deputados, pode ter sob as mulheres e crianças negras, exploradas pelo mercado clandestino de aborto
Imagem mostra uma mulher negra segurando um cartaz escrito "Pela vida das mulheres".

Uma mulher segura uma placa em apoio ao aborto legal durante uma marcha no Dia Internacional do Aborto Seguro na Avenida Paulista, em São Paulo, Brasil, em 28 de setembro de 2023.

— Miguel Schincariol/AFP

22 de junho de 2024

Por: Barbara Martins Alves dos Santos e Izabella de Menezes Passos Barbosa*

Os dados mais recentes sobre estupro no Brasil indicam um aumento significativo de ocorrências no país. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram registrados 74.930 casos de estupro. A maioria das vítimas (61,4%) de tais casos tinha até 13 anos​​. O estudo indica ainda que as crianças e adolescentes negros são as principais vítimas da maior parte dos estupros, representando 60% do total.

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No primeiro semestre de 2023, foram registrados 34 mil casos de estupro, representando um aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano anterior​. Estima-se que o número real de casos de estupro seja muito maior, alcançando aproximadamente 822 mil por ano, devido à subnotificação​.

O aborto legal no Brasil é permitido hoje em três circunstâncias, independentemente do avanço da gestação: em casos de estupro, quando há risco à vida da gestante e em casos de anencefalia do feto. No entanto, a implementação dessas leis enfrenta várias dificuldades práticas e burocráticas. Por exemplo, a Portaria 2.561/2020 do Ministério da Saúde exige a notificação dos estupros às autoridades policiais e a preservação de material para fins periciais, além de exigir que a vítima deve ser informada sobre a possibilidade de visualizar o feto por meio de ultrassonografia antes de decidir pelo aborto, o que pode ser uma forma de revitimização​​.

Ainda, em maio de 2024 o Supremo Tribunal Federal concedeu decisão liminar para suspensão de resolução recente do Conselho Federal de Medicina (CFM), que buscava proibir a utilização de uma técnica clínica para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. Essas e outras dificuldades muitas vezes levam as vítimas a buscarem alternativas clandestinas, aumentando os riscos para sua saúde e segurança​.

A equiparação da pena de aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, proposta pelo Projeto de Lei 1904/2024, não apenas afeta diretamente a saúde e os direitos das mulheres, mas também pode intensificar a violência policial contra jovens negras. Este artigo utiliza estudos e publicações do Núcleo de Justiça Racial e Direito  (FGV Direito SP) para analisar como a criminalização do aborto exacerba questões de segurança pública e violência racial, sobretudo considerando as maiores complexidades e vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres jovens, especialmente aquelas que são negras. Em síntese, argumenta-se que o Projeto de Lei em discussão, ao invés de proteger, acabará expondo tais jovens a maiores riscos e violações de seus direitos humanos.

Consequências da criminalização do aborto

Considerando que a maior parte das vítimas dos estupros no Brasil possuem menos de 13 anos e, em sua maioria, são vítimas de abuso sexual sofrido, muitas vezes, em casa, é preciso levar em consideração a demora que inevitavelmente existe para que as meninas descubram a gestação. A limitação da possibilidade de aborto até a 22ª semana de gestação, nesse sentido, desviará o foco do problema da proteção da vida dessas vítimas, e aumentará a recorrência de abortos clandestinos. 

As mulheres que recorrem a abortos clandestinos frequentemente enfrentam exploração e violência, o que aumenta a carga sobre a segurança pública para proteger essas mulheres. A criminalização do aborto cria um mercado clandestino perigoso e não regulamentado, onde as mulheres, especialmente jovens negras, são exploradas financeira e fisicamente. A criminalização do aborto está diretamente ligada à violência institucional e à exploração de mulheres, especialmente de minorias e grupos vulneráveis.

A criminalização do aborto acima de 22 semanas pode aumentar a desconfiança nas autoridades policiais, especialmente entre jovens negras e outras comunidades marginalizadas. 

Esta desconfiança dificulta a cooperação necessária para outras investigações criminais e reforça a percepção de que a polícia é uma ferramenta de repressão em vez de proteção. A percepção de que a polícia não protege adequadamente as comunidades marginalizadas é exacerbada pela aplicação agressiva de leis que criminalizam o comportamento de mulheres negras.

A criminalização do aborto no Brasil não só exacerba problemas preexistentes na segurança pública, como também cria novos desafios, as pesquisas do Núcleo e Justiça Racial e Direito sobre segurança pública da população negra brasileira e a letalidade de jovens negros nos trazem a necessidade de repensar o funcionamento do sistema de justiça e a segurança pública no país.

* Pesquisadoras do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Coordenado pelo professor Thiago de Souza Amparo, o grupo promove pesquisas e debates sobre o impacto do direito na questão racial.

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