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O que Èsù e o homem preto tem em comum?

6 de fevereiro de 2019

Em artigo, Roger Cipó e Viny Rodrigues criticam visão eurocêntrica do orixá; “O Homem Preto e Èsù são vítimas de uma colonização”, pontuam

Texto / Roger Cipó e Viny Rodrigues
Foto / Roger Cipó

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Todo Homem preto é de Èsù! Conhecer Èsù é caminho para a emancipação do homem preto.
Èsù é a síntese da masculinidade Africana. E não por acaso, o homem preto e Èsù são (também por isso) alvos marcados para extermínio.

Èsù é a divindade que mais sofreu com a violência do racismo, principalmente através de sua demonização por parte do colonizador europeu que ao referenciar o mundo em si mesmo, estabeleceu uma paralelidade entre Èsù e o diabo cristão, por este representar, entre tantas coisas, a magnitude de ser para além do sim e do não, do certo e do errado, dos binarismos gerais, e por se dizer e estabelecer para – e até pela – contradição. Quem não conhece (procure saber!), Èsù é o regulador da ética iorubá, o único que pode falar com Olodumaré antes de qualquer um. A ética aqui não é algo passivo como o ocidente vem definindo historicamente, não! A ética para Èsù, é Èsù – Não vou dar! Procure saber!

O mundo branco é, além de mais novo que Èsù, atrofiado intelectualmente porque não dá conta de expandir e nem de pensar para além de si mesmo. Certo ou errado não é nada perto do que Èsù é porque antes, no meio, durante e depois do positivo e negativo, há tantas coisas… Por partir de uma ética bélica, predatória, restritiva e dicotômica – pouco hábil a flexibilidade do pensar em consonância com a materialidade do corpo, a branquitude, justificada no poder da igreja, da colonização, do capitalismo e da destruição de tudo aquilo que consideram como “o outro”, demoniza Èsù e o sequestra nessa mesma condição. E como Èsù potencializa aquilo que recebe – porque esse é um dos seus princípios éticos – a branquitude, ainda que tente destruir “o outro”, destrói a si mesma e a tudo que constrói. É a ética de Èsù agindo, também!

Èsù Cipó 1

Vocês acham que alguma civilização branca viverá mais que as sociedades pretas africanas? Pensemos: com tanta história, estamos falando de mais de 5.000 anos de vidas pretas no mundo, em concordância com a natureza, com bom uso dos recursos, com espiritualidade afinada e refinada, são inimagináveis os avanços que essas sociedades autóctones poderiam ter conseguido, se não fosse a ruptura violenta do colonialismo racista. Já a branquitude, com sua ciência positiva e sua separação entre homem e natureza, chegou nos últimos milênios e só fizeram acelerar a destruição do mundo! Seria esse um gene de destruir o que não entende ou não consegue aceitar? (Olha aqui outra dica sobre onde Èsù e o homem preto se encontram!)

O Homem Preto e Èsù são vítimas de uma colonização que os teme, e no medo, são criadas estratégias para exterminá-los. Ambos escancaram as incoerências e contradições de uma sociedade que se pauta naquilo que não quer ver, e por isso não acredita naquilo que fala, e segue a orientar para que se faça o que manda um líder que não faz o que diz. Para Èsù, sopro que potencializa a palavra, isso não tem sentido. É a síntese da desonestidade – sim! A branquitude é desonesta consigo – e se para Èsù a coerência não se faz presente, ele traz o caos, para organizar e dar linha às coisas, até que se aprenda.

Ao pensar Èsù e o homem preto, a historiadora Carolina Rocha lembra que, “quando o diabo surge na história, aparece como um ser insignificante, minúsculo, quase que sem forma. Com o colonialismo, o diabo vai ganhando traços de formas humanas, e até cor”. Nesse processo, não precisa tanto para entender que a aparência que esse ser ganha é a do corpo do homem preto. Sim, o ocidente trabalha para que a imagem de diabo se aproxime, cada vez mais, da imagem do homem preto. Ao diabo, eles atribuem tudo de ruim, ou tudo que não se pode conter, na sociedade. Quem pode conter Èsù?

Já o homem preto, ameaça à masculinidade hegemônica ocidental, tão frágil e tão mesquinha, por não se dobrar nem diante do pior evento histórico de fundação do ocidente, a escravidão do Atlântico. Por ameaçar o que se estabelece como topo de uma pirâmide (eu penso muito sobre essa pirâmide, mas ok! Vocês usam símbolos nossos para definir espaços de opressão. Parem com isso!) fica marcado para morrer, na letalidade e na simbologia social.

O que se construiu sobre o homem preto que não fosse sobre animalizar seu corpo, sua fé, sua sabedoria, seu espaço no mundo? O que se construiu desses corpos se não a necessidade de destruí-los?

 

A colonização desumanizou esses corpos, os colocou na linha de tiro, antes mesmo deles se entenderem como homens. Um menino preto, por exemplo, não é um menino, é uma potencial vítima da violência policial, do sistema penal, do desemprego, do alcoolismo, da depressão, da ausência de si mesmo enquanto sujeito assujeitado pela colonização. Um menino preto de favela é arrimo de família, também. É quem abandona escola para fazer os corres e suprir necessidades básicas da família, lutando ao lado de sua mãe. O Homem preto é um homem a ser aniquilado em suas mais variadas formas. E ainda que queiram nos falar sobre masculinidades tóxicas, não devemos nunca nos esquecer que os homens pretos são produtos e não produtores dessa lógica violenta.

O pênis sem o falo, como já mostrado por Deivison Nkosi, é a emulação do poder masculino branco-hegemônico na forma mais exagerada e caricata, que os anos de destituição de si mesmo (corpo, alma, psique, etc) e animalização produziram no homem preto. Se um dos símbolos de Èsù é o falo, este por sua vez, vem sendo roubado dos homens pretos, e em seu lugar, lhe deram a Cruz branca da culpa, da submissão e da morte. Mas Èsù se move mais rápido do que se possa perceber e cria a cada passo uma encruzilhada com múltiplos caminhos para que o homem preto possa escapar do destino que o racismo estrutural traça todos os dias para ele.

Falar de masculinidades pretas e do homem preto, é antes de mais nada, falar da possibilidade de se constituir enquanto homem decolonial, enquanto sujeito de sua própria história, enquanto potência afetiva nas relações destroçadas pela escravidão, é falar da resistência ancestral que manteve Èsù vivo no “Novo Mundo”. Para isso, é importante assumir que o ser homem não está dado, não é um fato consumado, é um processo aberto para os múltiplos caminhos que Èsù nos disponibiliza. E se o homem preto não pode se fazer na solidão, outros homens e mulheres pretas são parte segura desta construção contra-hegemônica.

Roger Cipó (@rogercipo – @olhardeumcipo) é Ogan, fotógrafo, produz sobre a construção da imagem preta nas religiosidades afrobrasileiras.
Viny Rodrigues (@velhobarreiropapi) é doutorando em antropologia social pela USP, produtor cultural e pesquisador nas áreas de cultura e artes afrodiaspóricas.

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