Texto: Dina Alves / Ilustração: Moska Santana
No dia 16 de março de 2014, após operação da Polícia Militar numa favela localizada no Morro da Congonha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, uma mulher negra, empregada doméstica e moradora da favela foi baleada e jogada na patrulha policial. O corpo negro e sem vida era de Cláudia Ferreira da Silva, de 38 anos, que havia sido baleada no pescoço e nas costas. Depois, Cláudia foi colocada no porta-malas da viatura policial para supostamente ser levada ao hospital. No caminho, seu corpo rolou do porta-malas e, preso por um pedaço de roupa, foi arrastado pelo asfalto por mais ou menos 250 metros, sem que os policiais da viatura dessem atenção aos apelos de outros motoristas e pedestres.
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No dia 28 de novembro de 2015, os jovens negros Roberto Silva de Souza, 16 anos; Wilton Esteves Domingos Júnior, 20 anos; Carlos Eduardo Silva de Souza, 16 anos; Wesley Castro Rodrigues, 25 anos e Cleiton Correa de Souza, 18 anos, foram alvejados com 50 tiros por policiais militares quando voltavam para casa, próximo ao Conjunto de Favelas da Pedreira, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Tanto o ocorrido com Claudia Ferreira da Silva, quanto com os jovens fuzilados pelo Estado, nos ajuda a entender a relação senzala-favela-prisão situando-os no continuum penal que marca a transição entre escravidão e democracia. Alvos por excelência do sistema de justiça penal, a maioria dos explorados no mercado de trabalho, segregados nas favelas, mortos pela polícia, enjaulados nas prisões brasileiras são negros e negras.
Embora se identifique um padrão generalizado de vulnerabilidade da população negra: na saúde, na educação, no mercado de trabalho, no acesso aos bens culturais, como vítimas dos crimes de tráfico de pessoas, nas mortes por parto e outros tipos de doenças, nenhuma outra área pode ser mais representativa das injustiças raciais no Brasil do que o sistema penitenciário.
As imagens dos corpos negros fuzilados e arrastados na rua retratam a espetacularização da punição e demonstram como a escravidão serviu de laboratório para as mais cruéis formas de punição moderna. O Direito Penal Brasileiro, advindo da escola positivista, conserva essa concepção de controle corporal baseado numa epistemologia racial (um saber racial) que reserva aos corpos negros a culpabilidade e a punição. O relato da mãe de um dos jovens confirma: “Eles botam tanta burocracia, acham que a nossa dor é pouca. Faltava um carimbo”. A mulher se referia ao corpo do filho que permaneceu no Instituto Médico Legal. Por falta de documentação, o horário do velório foi alterado.
Entender as teorias do eugenismo e do evolucionismo foram fundamentais para a fundação das bases do direito criminal como um direito antipobre e antinegro. Os números alarmantes das mortes negras, declarados no Mapa da violência de 2015, somados ao desproporcional encarceramento, em síntese, podem ser vistos como consequência dessa hipervigilância racial.
O que equivale a dizer que a polícia encontra mais “crimes” entre os negros simplesmente porque a polícia “procura” por mais “problemas” entre os negros. As periferias do Brasil são espaços racializados que são objetos de vigilância policial e por isso têm muito mais chances de fornecer indivíduos para a indústria da punição.
Podemos considerar o ordenamento jurídico brasileiro como uma (re)atualização da ordem escravocrata e as cotidianas mortes negras são legitimadas pelo Estado e pela sociedade civil, através da grande mídia. Ainda que familiares das vítimas e o Movimento negro realizem denuncias e manifestações a fim de demonstrar o persistente genocídio, há a naturalização da espetacularização da morte: o negro amarrado ao poste na praia de Copacabana, a negra arrastada pelas ruas, o fuzilamento dos cinco jovens, as crianças negras mortas pelas balas “perdidas” e as cotidianas chacinas nas periferias do Brasil.
O sistema patriarcal-punitivo tinha (e tem) no corpo da mulher negra um de seus principais alvos. Isso pode ser ilustrado não apenas na experiência de Cláudia Ferreira, mas também nas estatísticas prisionais que apontam aumento consistente no número de negras presas e mortas pela polícia.
Embora a população prisional brasileira seja majoritariamente composta de homens negros, as mulheres negras, dada a sua condição vulnerável na economia neoliberal, têm cada vez mais sido objeto do Estado Penal. São elas, proporcionalmente, o grupo que mais cresce. Suas prisões são denominadas “mulas” no microtráfico de drogas e no regime racializado de dominação patriarcal do qual o Estado Penal é sua maior expressão.
As prisões se converteram num complexo industrial, um lucrativo negócio para a economia neoliberal. Quando se considera a dimensão em que as prisões obtêm lucro enquanto produzem meios de mutilar e matar seres humanos, e devorar recursos públicos, as semelhanças básicas tornam-se evidentes. As prisões não são mais nicho menor para as indústrias; a indústria da punição está no radar de incontáveis corporações nas indústrias de manufaturas e de serviços. Os presídios são identificados por seu potencial de consumidores e por seu potencial de mão de obra barata.
A exclusão racial, a hipervigilância policial aos bairros periféricos, o encarceramento em massa, a negação aos direitos constitucionais garantidos, tudo isso demonstra este contínuum penal que marca a transição entre escravidão e democracia. A persistente presença do racismo institucional no olhar do judiciário, no viés policial e as execuções sumárias, no olhar dos promotores e o lugar racialmente privilegiado que estes ocupam constituem a indústria da punição que situa e mantêm a população negra no lugar historicamente demarcado – senzala-favela-prisão.
Dina Alves é membra efetiva do Adelinas – Coletivo Autônomo de mulheres Pretas. Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP. Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Católica de São Paulo com a pesquisa sobre Mulheres negras encarceradas. Advogada Ativista acompanha casos de violações de Direitos Humanos da população vulnerável; Entre os anos de 2007 a 2009, como estagiária do Ministério Público do Estado de São Paulo, acompanhou casos de violações de Direitos Humanos de crianças e adolescentes privados da liberdade na fundação CASA na cidade de Guarujá. É membra do Grupo de Estudos “Interseccionalidades” entre Brasil e Colômbia. Membra efetiva do Adelinas – Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas.