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De Alcaçuz ao Carandiru: Crônicas de um massacre anunciado

17 de março de 2017

Os massacres no sistema prisional brasileiro foram execuções anunciadas, afirma Dina Alves. A pesquisadora, autora do estudo “Rés Negras, Judiciário Branco”, analisa a seletividade racial do punitivismo no Brasil.

Texto / Dina Alves
Edição de Imagem / Vinicius Martins

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O título aqui é uma referência ao livro “Crônicas de uma morte anunciada”, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Publicado em 1981, conta, na forma de uma reconstrução jornalística, o último dia de vida de Santiago Nasar, assassinado pelos dois irmãos Vicário, sem chance de defesa. No romance, quase todos os habitantes do lugarejo onde vive Santiago, dentre eles, as autoridades, o padre e o delegado, ficam sabendo do homicídio premeditado algumas horas antes, mas não fazem nada de concreto para proteger a vítima ou impedir sua trágica morte.

A história fictícia aqui é uma preliminar tentativa de traduzir as trágicas mortes da população carcerária brasileira e o silêncio estratégico do Estado, da mídia e da sociedade civil organizada nos últimos tempos. Trago como histórias reais, os mais recentes massacres em 2017, a título de exemplo: Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (56 executados); Penitenciária Agrícola do Monte Cristo, (Pamc), em Roraima (31 executados); Penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta no Rio Grande Norte (26 executados). Ainda que careçam de confiança, os números, bastante subestimados, fornecidos pelas próprias administrações penitenciárias e pelas autoridades nacionais anunciaram que, no mínimo, 200 pessoas morreram e outros centenas de milhares foram jogados à mais abjeta degradação humana, no interior do sistema penal dos últimos tempos.

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Me concentro aqui em direcionar a reflexão para buscar uma compreensão mais ampla da prisão como ideologia de desumanização do corpo negro e o Estado como produtor do terror racial de sofrimento, à medida que mata e deixa morrer pessoas tuteladas por ele.

Os massacres que ocorreram sob a hipervigilância do Estado e a conivência da grande mídia demonstraram assustador grau de crueldade que se confunde entre a ficção do romance e a realidade brasileira nos presídios. A relativização da vida negra é constatada nas próprias imagens de corpos esquartejados, carbonizados e alguns arremessados para fora das unidades prisionais. No pátio em Alcaçuz, por exemplo, uma cabeça decapitada ao lado de um coração foi exposta. No romane, o corpo de Santiago Nasar foi esquartejado, foram retiradas as vísceras e também permaneceu exposto, em praça pública, para a comunidade e as autoridades daquele Vilarejo, sob os olhares de cachorros famintos. A autorização da barbárie também se assemelha nos dois acontecimentos trágicos: na ficção, as pessoas fizeram a escolha de deixar Santiago morrer, desde o juiz de paz ao padre do Vilarejo. Diz o romance: “…muitos dos que estavam no porto sabiam que iam matar Santiago Nasar. Dom Lázaro Aponte, coronel de academia em gozo de boa reforma e o prefeito municipal”. O padre Carmen Amador tambem não se preocupou…”.

Da mesma forma, as autoridades brasileiras e as instituições governamentais (Defensoria Pública, Ministério Público, Poder Executivo, Judiciário e Legislativo, Secretarias de Direitos Humanos em todos os âmbitos nacionais) optaram por assistir, de camarote, à barbárie prisional. Por exemplo, nos dias que ocorreram os massacres na Penitenciária do Amazonas, agentes do Estado aguardavam as execuções acontecerem para, só depois, “salvar” a vida dos 10 reféns, funcionários da paradoxal empresa “Humanizare”. 

Não é de hoje que as organizações internacionais de defesa de Direitos Humanos têm chamado a atenção do mundo para a realidade degradante das prisões brasileiras. O aviso da “crise” no sistema penitenciário e a oportunidade para escapar a um massacre mais do que anunciado, se deeram através de outras barbaridades, resultados da própria ação do Estado. Tomo como exemplo: O Massacre do Presídio de Urso Branco, em Roraima, em 2002, que resultou na morte de 27 homens, mortos a golpes de chuchos (armas artesanais), cujos presos tiveram suas cabeças e outras partes do corpo decepadas; o massacre do Carandiru, em 1992, que deixou 111 presos mortos, sob o olhar do governo Fleury; o massacre na Casa de Custódia de Benfica, que resultou na morte de 30 pessoas, na Casa de Detenção, no Rio de Janeiro, em 2004; o massacre no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, com 18 assassinados; o massacre no presídio Ilha Anchieta, que ficou conhecido como “Alcatraz Brasileira”, com 108 assassinados; o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) que teve 56 assassinados; e o massacre na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, 26 assassinados.

Estes números subestimados são apenas exemplos da relativização da vida dos considerados cidadãos/cidadãs indesejáveis. Pesquisas mostram que a mortalidade é 6,7 vezes maior dentro do sistema prisional, do que fora dele, e as situações de violações sistemáticas de direitos são notórias e encontram-se detalhadamente registradas em uma infinidade de relatórios produzidos por organizações governamentais e não-governamentais. Avisos e “recomendações”, inclusive da Organização das Nações Unidas (ONU), informam que as pessoas privadas de liberdade poderiam deixar de ser mortas e vilipendiadas em sua dignidade.

Em 2010, a organização Human Rights Watch elaborou denúncia com registro de 64 casos de tortura praticados por agentes penitenciários e policiais civis/militares no Brasil. As denúncias envolvem espancamentos, agressões físicas, uso de choques elétricos no corpo, sufocamento com sacos plásticos, violência sexual, psicológica, afogamentos em privadas com fezes, ingestão de parafina, e socos e pontapés nos ouvidos. Como exemplo, cito o caso de uma mulher negra, carroceira, presa, na penitenciária Feminina de Santana em São Paulo que perdeu a audição do ouvido direito após sofrer torturas de agentes do Estado na ocasião da prisão. O relatório da Organização Human Rights Watch denunciou que os exames de corpo de delito de presos que denunciam abusos são tardios, realizados de forma superficial ou na presença de policiais torturadores. Os exames apreendidos pela organização não contêm fotografias das lesões, impressões digitais dos presos ou outras informações essenciais à investigação.

Rebelião na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. (Imagem: Andressa Anholete/AFP)

A ONU também apresentou graves denúncias de casos de violações nas prisões brasileiras: superlotação das unidades, em alguns casos, com quase três vezes mais que sua capacidade; recorrentes casos de tortura na detenção e no interrogatório; condições caóticas dentro das instalações, com grande impacto nas condições de vida dos detentos e no acesso à assistência jurídica, a cuidados com a saúde, apoio psicossocial, oportunidades de trabalho e estudo; frequentes usos de spray de pimenta, gás lacrimogêneo, bomba de ruído e bala de borracha; uso de armamento pesado, incluindo fuzis, escopetas, espingardas e pistolas pelos funcionários das prisões. Consta, no relatório, que negros enfrentam risco significativamente maior de encarceramento em massa, abuso policial, tortura e maus-tratos, negligência médica e recebem sentenças maiores que os brancos pelo mesmo crime e há discriminação na prisão – sugerindo alto grau de racismo institucional (ONU, 2016).

Em outubro de 2016, a Pastoral Carcerária divulgou o relatório e o resultado do acompanhamento de mais de uma centena de casos de tortura em 16 estados e no Distrito Federal, e já apontava a participação estrutural do sistema de justiça na ocultação e validação de práticas violadoras de direitos. Ou seja, o massacre ocorrido foi anunciado por várias organizações e institutos que trabalham com a temática do encarceramento, setores do próprio governo, familiares de presos, setores de movimentos sociais e pela própria população carcerária, através das rebeliões que denunciaram condições precárias, superlotação de muitos estabelecimentos; manutenção de práticas de torturas e maus tratos por parte de equipe técnicas; exiguidade dos serviços prisionais, como alimentação, higiene pessoal, vestuário, assistência jurídica, programas de reabilitação, assistência médica, doenças, suicídios e mortes.

Nenhuma outra área social pode ser mais representativa das injustiças raciais no Brasil do que o sistema penitenciário. As imagens dos corpos negros decapitados e esquartejados retratam a espetacularização da punição e demonstram como a escravidão serviu de laboratório para as mais cruéis formas de punição moderna. O Direito Penal anti-pobre, antinegro, conserva essa concepção de controle corporal baseado numa epistemologia racial (um saber racial) que reserva aos grupos historicamente racializados a culpabilidade e a punição.

Nesse caso, pode-se considerar absolutamente irrelevantes os documentos que conferem ao Brasil a responsabilidade penal, civil e administrativa nas diversas Convenções Internacionais sobre violações de Direitos humanos das quais é signatário. Da mesma forma, as diversas instituições chamadas, eufemisticamente, de Secretarias e Ministérios de Direitos Humanos. Direitos humanos para quem? Historicamente, as mortes, torturas, maus tratos e confinamentos da população negra e indígena são democratizadas pela sociedade, pelo Estado e pela grande mídia. Os grupos racializados, tratados como “quase cidadãos”, ou “cidadãos de segunda ou terceira categorias”, continuam do lado de fora do projeto de democracia. Aliás, a democracia só se completa com o genocídio em curso, há pelo menos quinhentos anos, do Brasil do carnaval, do golpe e do futebol.

O espetáculo da prisão do empresário Eike Batista, com direito a selfie, (diga-se de passagem), que ocorreu no dia 30 de janeiro, por envolvimento em corrupção e desvio de dinheiro público, e a espetacularização das anunciadas mortes nos presídios de Alcaçuz ao Carandiru, talvez nos revele que é na justiça penal burguesa o lugar por excelência de reprodução das desigualdades raciais. Se, por um lado, o privilégio branco de Eike Batista não o definiu como “criminoso”, “punível”, de outro, os corpos matáveis, indisciplinados, brutalizados, arremessados para fora dos muros, marcam a soberania do Estado penal. Os privilégios múltiplos na prisão de Eike Batista revelam como o Direito Penal está profundamente conectado à estruturação de suas matrizes escravocratas. O saber físico-penal é inscrito na ordem do discurso e no corpo da população prisional como um símbolo da expressão de soberania do Estado que mata.

Os massacres anunciados sugerem que, para alguns corpos marcados por sua condição de raça, o encarceramento não produz corpos disciplinados. O encarceramento é, na verdade, uma outra manifestação que não tem nada a ver com garantia de vida. Aqui o Estado aparece como ladrão que saqueia subjetividades, aprisiona, desumaniza, produz subjetividades submissas e corpos puníveis, vazios, assombrados, psicologicamente destruídos. Se o Estado-Penal-Racial produz terror corpo-psíquico, poderia ele ser chamado da mais perigosa, e mais verdadeira, facção criminosa?

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