Carregamos, além do conhecimento técnico-científico, tecnologias ancestrais do cuidar , que confrontam o poder médico sobre o corpo, transmitindo a vitalidade para o (r)existir
Texto / Bruna Farias | Imagem / Raphael Pizzino / Coordcom / UFRJ
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De amas- de- leite, mães pretas, domésticas, cozinheiras, benzedeiras, curandeiras, parteiras, à auxiliares de enfermagem, técnicas de enfermagem e enfermeiras. Desde que mulheres africanas aportaram como escravizadas deste lado do Atlântico, temos viabilizado condições para manutenção da saúde, diante de surtos e epidemias.
São muitos os exemplos: a primeira epidemia devastadora iniciada no século XVI, a Colonização Portuguesa, que dentre tantas mazelas disseminou a varíola; no século XIX, Febre Amarela, Cólera; século XX, Gripe Espanhola, Varíola, AIDS, Dengue, e em todos os ciclos da vida, estávamos lá garantindo a existência do povo brasileiro através dos cuidados.
A enfermagem, ciência da saúde que estuda e trabalha com o cuidado sistematizado, é uma área ampla que reúne várias atividades profissionais, dentre elas, auxiliar de enfermagem, técnica de enfermagem e enfermeira, sendo essas três as principais profissões da categoria, segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).
O maior estudo sobre o perfil da enfermagem no Brasil, realizado pelo Cofen/Fiocruz (2013), mostra que há, aproximadamente, 3,5 milhões de trabalhadores das diversas profissões da saúde, e a equipe de enfermagem compõe cerca de 50% destes trabalhadores, sendo que 86% desta equipe são mulheres, 0,6% (10.132) são indígenas e 53% (955.578) são negras e negros, que compõem 46,5% dos profissionais da enfermagem que atuam nos Serviços Públicos de Saúde no Brasil. Vale ressaltar que 47% dessa categoria que atua na rede pública afirma ter sofrido discriminação racial e 78,5% discriminação de gênero.
Nas construções sociais o cuidar é relacionado ao “instinto feminino” e às atividades do ambiente doméstico, e não à uma profissão que requer remuneração. Na história da enfermagem brasileira, no século XIX, a profissionalização de mulheres negras e indígenas, consideradas pré- profissionais porque detinham conhecimento acerca das práticas tradicionais de saúde, foi-lhes negada, e o monopólio das práticas de saúde pela classe médica criou e tem sustentado nas representações sociais a relação de subordinação da enfermagem para a categoria médica.
No período colonial, o cuidado, que nessa época era tido como função social de servidão, realizado majoritariamente por mulheres negras, foi um dos produtos mais extraídos do regime escravagista. Mulheres negras eram retiradas do convívio de seus familiares e de outras pessoas escravizadas, muitas vezes impedidas de prestar cuidados à esses, para cuidar da sociedade escravocrata.
Como domésticas, proviam nutrição e higiene da casa, como mães pretas, os cuidados aos dependentes (crianças, idosos e doentes) para realização das atividades diárias e, como amas-de-leite, eram responsáveis por amamentar os filhos dos senhores. As amas- de- leite tinham um tratamento diferenciado, pois eram rigorosamente selecionadas (avaliavam, dentre outros critérios, sua beleza, religiosidade e nível de assimilação da cultura portuguesa), exerciam a maternagem com os filhos dos escravocratas e ainda eram fonte de lucro para os senhores, podendo ser alugadas para amamentar outras crianças.
É neste contexto que constitui-se a identidade e representatividade do profissional da enfermagem no Brasil, assim como ocorre no processo de constituição de identidade pós-moderno, mediada pela configuração histórico-social- econômico deste país – um estado-nação herança da maior sociedade escravista moderna, que nasce das violências e extermínio de diversos povos, africanos e indígenas, e é atravessada pelo racismo, sexismo e hierarquização de classe reforçando a invisibilidade e a desqualificação dos profissionais da enfermagem, sobretudo das mulheres negras.
Desde que a Organização Mundial de Saúde declarou pandemia (termo empregado quando muitos casos de uma determinada doença ocorrem em vários continentes) por Covid-19, o novo coronavírus, em março de 2020, as disparidades sociais e raciais, que também são determinantes no processo saúde-doença, o subfinanciamento crônico somado a redução de investimentos federais no Sistema Único de Saúde (SUS) e em programas sociais provocados pela Emenda Constitucional 95/2016 e a falta de insumos e de recursos humanos (técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, higienizadores) nas unidades de saúde, são evidenciados, mostrando para a população a importância da participação popular nas gestões, e de políticas públicas que fortaleçam a saúde e seus trabalhadores.
Diante deste cenário surge a pergunta: quem está na linha de frente desta pandemia?
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2016 revela que 54,9% da população brasileira é composta por negros, sabemos que cerca de 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negros. Somente a equipe de enfermagem compõem metade dos profissionais de saúde e é, majoritariamente, constituída por mulheres e negras (os). Atuando no SUS, são aproximadamente 955.578 profissionais da enfermagem negras (os).
É necessário ressaltar que profissionais como copeiras e higienizadoras também executam funções em unidades de saúde e, em sua maioria, são mulheres negras. A população negra, seja como trabalhadora da saúde ou usuária do SUS é quem está mais exposta aos agentes nocivos à saúde (biológicos e/ou sócio-econômicos) e à precarização do trabalho, como falta de equipamentos de proteção individual (EPI) – COFEN recebeu 4598 denúncias de inadequação de fornecimento de EPI -, de piso salarial e extensas jornadas de trabalho.
Mulheres negras, são maioria dos profissionais que atuam nas unidades de saúde, principalmente nos territórios marginalizados, desde os antigos hospícios, no século XIX, às periferias e favelas. Carregamos, além do conhecimento técnico-científico, tecnologias ancestrais do cuidar , que confrontam o poder médico sobre o corpo, transmitindo a vitalidade para o (r)existir.
Peço a bênção às também enfermeiras, Maria José Barroso (Maria Soldado), Dona Ivone Lara, Izabel Santos, Mãe Stella de Oxóssi e todas as matriarcas que nos antecederam, para afirmar, somos mulheres negras e sempre estivemos na linha de frente da manutenção da saúde deste país e em luta pelo SUS.