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Dos traficados com drogas, aos traficantes de drogas: racismo e proibicionismo no Brasil

16 de maio de 2019

Historiador resgata o passado para mostrar que a criminalização do povo negro hoje é racista e tem origens no sistema escavocrata

Texto / Henrique Oliveira | Imagem / Reprodução

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Segundo o historiador Henrique Carneiro no artigo “As drogas: Objeto da Nova História”[1], a nova história se caracterizou por trabalhar com novas fontes e objetos em pesquisa histórica, como também por ter uma nova leitura de velhas fontes.

As fontes médico – farmacêuticas do período colonial puderam demonstrar além de uma prática terapêutica, uma moral reguladora do uso de drogas. As obras dos meados do século XVI representaram o ressurgimento de uma farmacologia que incorporava ao conhecimento ocidental diversas plantas orientais e americanas, afrontando as concepções medievais sobre o uso de analgésicos e alucinógenos, como Ópio e Cannabis.

As navegações comerciais transatlânticas resultaram na inserção da bebida alcoólica na vida dos povos da América, África e Ásia, juntamente com a expansão do tabaco, do cacau americano, café africano, chá asiático e das especiarias indianas.

Na passagem do século XV para o século XVI o consumo de drogas tinha um caráter amplo e disseminado. No século XVI ocorreu na Europa um aumento do consumo de drogas, com o aumento do fornecimento das especiarias asiáticas e a chegada de novas plantas da América.

Nesse mesmo momento o controle da Igreja na vida cultural tem um declínio, o que levou ao aumento de consumo de Ópio, por exemplo, que foi uma substância muito utilizada no antigo mundo romano.

No século XVI o conceito de droga como nos diz o historiador Henrique Carneiro era muito vinculado a elementos mágicos e místicos, e abarcava várias substâncias, que tinham efeitos considerados sensoriais, substâncias que traziam novas cores, sabores e que impressionavam os saberes.

A descoberta do caminho marítimo para a Índia e a chegada à América estabeleceram o tráfico de drogas que deu fundamento ao sistema mercantil moderno.

Mas é um pouco antes, no século XII, com o Renascimento Cultural e os contatos com o oriente, e o surgimento das universidades, que deram impulso ao saber herborístico. No século XIII o contato com o oriente, a cultura árabe e a invenção do álcool destilado, levou a reintrodução da farmacologia e o interesse médico pelas plantas.

Os médicos que acompanhavam as expedições europeias no processo de colonização da América testemunhavam e relatavam os costumes indígenas, conheceram plantas terapêuticas, afrodisíacas e alucinógenas, e com esse contato escreveram manuais de botânica, sofreram repressão por terem suas ideias consideradas heterodoxas, o que demonstra sobre a origem moral da regulamentação do consumo algumas drogas que se estabeleceu no mundo moderno.

No texto “Bebidas alcoólicas e outras drogas na época moderna. Economia e embriaguez do século XVI ao XVIII”[2] o historiador Henrique Carneiro aponta para a existência de três grandes ciclos comerciais das drogas:

O primeiro deles o das especiarias no século XVI, fruto do comércio pela rota marítima rumo ao Oriente. O segundo ciclo baseado na produção e comércio do açúcar, da água ardente e do tabaco, que marcaram a formação do sistema colonial, que montou uma relação comercial onde as drogas eram moeda de troca por escravos, e a escravidão era responsável pela produção dessas drogas nas plantations americanas. E foi por causa do açúcar, que os africanos foram retirados aos milhões e despejados na América. O terceiro ciclo foi baseado nas bebidas quentes como o chá e o café.

O campo da história da alimentação é atravessado no período moderno pela história do consumo do álcool, da expansão da produção e o comércio de diversos tipos de alcoóis destilados. O álcool está dentro do fluxo dos produtos no antigo sistema colonial, do tráfico de escravos, ao mesmo tempo em que crescia a procura por álcool na Europa, a cachaça, por exemplo, foi incorporada na dieta dos povos africanos, americanos e orientais.
É nesse momento que a droga enquanto alimento ganha espaço, onde seu consumo faz parte não só da comida, como também do apaziguamento da dor e do entusiasmo da festa. O sistema colonial é responsável por difundir a mercadoria – droga, que carrega em si elementos de mercadoria, de troca e lucro e o fetiche do consumo.

A correlação do álcool com a escravidão negra ocorre tanto na utilização da aguardente como moeda de escambo para o tráfico negreiro, como na utilização para o plantio da matéria – prima a ser destilada nos alambiques dos engenhos.

O comércio mundial do álcool destilado e de tabaco se constitui e se relacionam nos séculos XVI e XVII, não podendo ser compreendido apenas no âmbito da Europa, com o seu fluxo comercial entre América e África, sendo as principais mercadorias – droga no escambo por escravos. O historiador Eric Willians no livro Capitalismo e Escravidão, diz que no século XVIII a exportação de Rum da “Nova Inglaterra” para a África representou mais de um quinto do total das exportações coloniais em 1770.

E é justamente nesse período da colonização, do tráfico de escravos para o Brasil, que o vinho português vai ganhar mercado na África. No artigo ”A produção e os usos de bebidas alcoólicas na América e nas praças da África central ocidental”[3], o autor Raphael Martins discute como Portugal introduz o seu vinho na região da África central.

Na África a produção de vinho e o seu consumo estavam ligados à vários aspectos da vida em sociedade, no auxílio à digestão, era oferecido como forma de demonstrar hospitalidade, em rituais fúnebres, nas transações comerciais, matrimônios, festas e para realizar contatos com os mortos através do transe.

As bebidas também eram utilizadas como formas de pagamento de tributos nos reinos do Kongo, Ndanga e Nsoyo. Na África o vinho era produzido através da Palmeira de Ráfia, o chamado “Vinho da Palma”.

Após as lutas portuguesas pela conquista de Luanda, no final do século XVI e XVII, houve uma destruição da plantação de palmeira, o que levou a desorganização da sua produção, o que permitiu que Portugal introduzisse o seu vinho na região.

A partir da relação da população local com a bebida alcoólica, e as funções que ela realizava na sociedade, o vinho português se tornou um instrumento para a realização de alianças políticas e aquisição de escravos.

O vinho português tinha um teor alcoólico maior do que o que era produzido na África, e logo acabou desbancando a concorrência interna, as funções desempenhadas pelo vinho nas sociedades africana, aliado a necessidade de se obter mais escravos para a produção de açúcar no Brasil, fez que o vinho se tornasse um importante produto para os traficantes de escravos.

No livro O vinho para o preto – Notas e textos sobre a exportação do vinho para a África[4], José Capela faz uma análise histórica da exportação da bebida para o continente, desde o século XVI ao século XX, e comenta que as exportações portuguesas para África oriental, sobretudo para a região de Moçambique, na metade do século XVIII incluíam garrafas de aguardente e barris de vinho.

A primeira proibição da produção e comércio de algum tipo de droga na história do Brasil foi registrada no período colonial, no artigo “O envolvimento dos jesuítas no processo de proibição da cachaça no Brasil”[5], Raphael Ricardo e Claudinei Mendes discutem como entre 1640 – 1695 a produção e o consumo de cachaça sofreram com várias medidas legislativas por parte da Coroa Portuguesa. Entre as motivações que levaram a proibição estava a reclamação dos jesuítas, que diziam que o consumo da bebida era um problema para a catequização dos indígenas, agindo como uma degradação do corpo e da alma.

A primeira proibição aconteceu em 1641, quando a Coroa emitiu uma provisão proibindo a produção de cachaça, e durante o século XVII a cachaça vai passar por proibições e liberações, quando é liberada definitivamente em 1695 com objetivo de facilitar a aquisição de escravos.

A relação entre Racismo e Proibicionismo fez parte do debate acerca da legislação municipal da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro em 1830, quando uma Postura Municipal proibiu a venda e o uso do “Pito do Pango”, nome popular da Maconha. Na determinação ficava proibida a venda e o uso, os comerciantes seriam multados em 20 mil réis, os escravos e as pessoas que usassem seriam presas por três dias, e assim fica demonstrado que os escravos – africanos e seus descendentes que ainda tivesse em situação de cativeiro – eram um dos alvos da criminalização da Maconha no Rio de Janeiro imperial.

Mas é apenas no pós – abolição que as drogas serão de fato proibidas, e em meio a esse processo, questões raciais estarão evidentes em torno do uso de drogas e por quais motivos algumas elas deveriam ser proibidas.

Na dissertação de mestrado “Fumo de negro: A criminalização da Maconha no Brasil (1890 – 1932)”[6], Luísa Saad discute a influência do Racismo para a proibição da Maconha no país.

E não há dúvidas da origem africana da planta, pois a Maconha era conhecida pelo seu nome popular de “fumo de Angola”. Um dos textos mais conhecido e considerado pioneiro nos estudos sobre Maconha foi “Os fumadores de Maconha: efeito e males do vício”, do médico sergipano que atuou na Bahia, José Rodrigues Dória, ele também escreveu “Toxemia e Crime”, em que argumenta que a Maconha causava desordens digestivas, debilidade geral, loucura crônica e demência.

E segundo Dória o uso de Maconha no Brasil deve – se ao fato do Brasil ter mantido até a metade do século XIX o “baixo tráfico de carne humana da África”.

Apesar de nos seus estudos Dória reconhecer que os efeitos da Maconha são variados de acordo com a quantidade e os indivíduos, ele prefere ressaltar as generalizações assustadoras.

E nesse mesmo contexto a medicina institucional passa a disputar sua legitimidade para oferecer diagnóstico e prescrever tratamento. O movimento de monopólio da prática terapêutica por parte da medicina incluía o controle da distribuição e venda de fármacos.

A restrição de determinadas substâncias para a exclusividade médica, acontece na República, quando passa a se criminalizar práticas medicinais não oficiais, por pessoas não diplomadas, onde ficaria no dever do Estado proteger a saúde pública.

A exclusividade da medicina institucional como a única prática a ser reconhecida pelo Estado foi uma das lutas políticas do também médico legista, Nina Rodrigues, contra os positivistas que eram contra o estabelecimento de uma medicina oficial. E é justamente a saúde pública que o bem jurídico defendido pelo Direito Penal na política de drogas.
Os estudos médicos vão passar então a associar e relacionar o uso de maconha com a violência e a criminalidade, e que esse mau hábito teria sido trazido ao Brasil pelos africanos, e o seu consumo no período pós – escravidão seria uma vingança pelo roubo de sua liberdade.

A Maconha também fazia parte rituais e cultos afro – brasileiros, desde a antiguidade às drogas tem a função de permitir a alteração da percepção como uma forma de estabelecer conexão entre os seres humanos e suas divindades.

E já na África a cultura canábica era muito difundida, fazendo parte de cerimônias religiosas, através da queima ou defumação de ambientes privados. E aqui no Brasil a utilização da Maconha foi identificada no Catimbó em Pernambuco, em Alagoas nos sambas e batuques, e no Candomblé como fumo ou infusão, também fazia parte de beberagens e rituais de iniciação.

Apesar da proibição da Maconha acontecer oficialmente em 1932 no governo Vargas, enquanto a produção do médico Rodrigues Dória foi feita na década de 1910, não se sabe o porquê desse intervalo de tempo, mas a influência cultural e científica dos escritos racista do doutor é notória. A proibição da Maconha deve ser entendida dentro do processo político de repressão à cultura de matriz africana como o Samba, Capoeira e o Candomblé. Em 1937, por exemplo, foi criado o setor de Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações, era o mesmo setor responsável por perseguir as religiões e o comércio de tóxicos, que eram vistos como causadores de loucura e doença mental.

O historiador Jorge Emanuel na dissertação “Sonhos da diamba, controles do cotidiano: Uma história da criminalização da Maconha no Brasil republicano”[7] estuda o processo de criminalização da venda e do consumo de Maconha em Salvador após a proibição no ano de 1932.

No ano de 1940 o doutor Décio Parreiras, membro da Academia Nacional de Medicina e da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, apresentou um relatório sobre os usuários de Maconha na Bahia.

As profissões dos 61 maconheiros listados no relatório do doutor Parreiras que estavam na penitenciária de Salvador são definidas como colcheiros, jornaleiros, barbeiros, vendedor ambulante, engraxate, peixeiro e demais profissões dos estratos inferiores da classe trabalhadora.

A acusação de maconheiro era aplicada a uma série de indivíduos identificados entre a “população nortista pobre”, da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Pará, Maranhão, em sua maioria negros e pardos. O discurso condenatório sobre Maconha até a primeira metade da década de 1960 considerava os usuários de maconha como “viciados, geralmente pertencentes a última e mais baixa escala social, são mesmos analfabetos e sem cultura”. Essa afirmação foi feita pelo doutor Irabussú Rocha, Diretor do Serviço Nacional de Educação Sanitária, no prefácio da segunda edição de Maconha – Coletânea de trabalhos brasileiros, como demonstra o historiador em seu trabalho.

A história do povo negro no Brasil desde que fomos trazidos da África é atravessada pela relação com as drogas, seja como moeda de troca no tráfico atlântico, ou na contemporaneidade, onde pessoas negras são mortas e presas em massa pela política criminal de drogas, que ainda nos mantém acorrentados.

Henrique Oliveira é graduado em História e mestrando em História Social pela UFBA,militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia e colaborador da Revista Rever.

[1] CARNEIRO,Henrique, As Drogas: Objeto da Nova História, Revista USP- Dossiê da Nova História,nª23,Set/Out/Nov,94
[2] Carneiro, H. Bebidas alcoólicas e outras drogas da época moderna. Economia e embriaguez do século XVI ao XVIII. Historiador Eletrônico, 2004. Disponível em: http://www.neip. info
[3] MARTINS, Raphael, A produção e os usos de bebidas alcoólicas na América Portuguesa e nas praças da África Central Oriental,Faces da História,Assis –SP,V3,Nº2,p22 – 35, Jul – Dez,2016.
[4] CAPELA,José, O Vinho para preto: Notas e Texto sobre a exportação para a África, Afrontamento, Portugal,1973
[5] RICARDO,Raphael Martins,MENDES,Claudinei Magno Magre, O envolvimento dos jesuítas no processo de proibição de cachaça no Brasil (1640 – 1695), Revista Acta Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações” Acta, Assis, v. 2, 2013.
[6] SAAD, Luísa Gonçalves,”Fumo de negro”: A criminalização da Maconha no Brasil (1890 -1932),2013,147f, Dissertação(Mestrado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
[7] SOUZA, Jorge Emanuel Luz de, Sonhos da Diamba, controles do cotidiano:Uma história da criminalização da Maconha no Brasil republicano (Dissertação de Mestrado), 2012,194f

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