Estudante de psicologia da UNESP-Bauru e fundadora do Coletivo Negro Kimpa, Julia Conceição escreveu sobre as dimensões do afeto para a comunidade negra e as possibilidades de luta contra o racismo a partir de noções de amor, distantas da platônica
Texto / Julia Conceição I Imagem / Acervo pessoal de Julia Conceição
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“Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência
É roubar o pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir”
Eu não sou um corpo apenas, eu não quero mais ser vista assim.
É por tantas vezes isso ter vindo como violência impositiva que eu não quero mais, é por toda carga de sofrimento, desumanização e dor de meus antepassados. Por mais que eu tenha escolhido nesses últimos tempos assim ser vista e sentida, eu não posso mais. Eu não consigo mais. Eu sou espírito, Divina, mente. E eu também sou corpo, mas eu sou integrada. E preciso falar, sentir e viver isso.
E não é só. Eu sou bonita, inteligente, sensual, dedicada, autêntica, carinhosa, respeitosa, cuidadosa, me comunico bem, me expresso buscando não violentar. Então se hoje eu consigo enxergar isso em mim e no outro, eu não aceito mais a violência de ser resumida a apenas corpo.
E, frente a isso, eu busquei mais uma vez trazer ao consciente que eu me afeto com as relações que eu construo e que são tão importantes e potentes como eu sou. Então, eu também não vou mais resumir ninguém a corpo, eu não vou mais me relacionar com pouca intensidade.
Eu sei ser pouco, eu consigo ser pouco, eu apenas não quero.
Eu politizo meus afetos e atitudes. Porque como diz a hooks, quando ensina sobre ensinar, que coerência eu teria se não o fizesse? Kilomba traz sobre epistemologia situada quando assume que é preciso colocar quem você é e sua história naquilo que você estuda, ensina e transmite. Se eu bato no peito pra falar de amor; cuidado e revolução preta; sobre psicologia preta e cura; sobre integração mente, corpo e espírito; que pessoa eu seria se eu não trouxesse isso pra minha vida? Se eu escolhesse não tratar bem a mim mesma e as pessoas com quem eu me relaciono, que pessoa seria eu? Isso faria sentido? Pra mim, não.
E quando eu digo tratar bem, eu digo querer conhecer profundamente, eu quero dizer empenhar em cuidar e ser cuidada, porque amor nunca foi e nem será só dar ou só receber, nunca. Quando eu digo bem, eu quero falar sobre dedicação em conhecer as dificuldades e facilidades pra assim melhor relacionar, comunicar e afetar; quando eu digo bem, é sobre amor.
E não sobre esse amor que vocês conhecem e estão acostumados. Esse amor romântico ou aquele que machuca por si. O amor que abusa ou que depende emocionalmente. Eu to falando de amor sério, construído, que sobe a montanha e não desce, amor cuidado, instruído pela Ancestralidade. É com esse amor que eu afeto e cuido, é com esse amor e a partir desse amor que eu construo todas as minhas narrativas, com minha família, amigas/os e amores, políticas e acadêmicas. É esse amor que me guia, é esse amor que me cura, é esse amor que me move, revoluciona, transforma e inspira. É esse amor que eu quero pra mim e pra todas e todos. Sem exceção.
É o amor que Sobonfu Somé transmite quando elucida sobre comunidade e família; É o amor que Ericka Huggins usa para transformar o mundo; É o amor de bell hooks expondo sobre a escolha de pessoas pretas em amar; É o amor de Iyás e Babás que matrigestam terreiros; É o amor que Padre Henrique Vieira esbraveja em suas orações; É o amor que Emicida e Tássia Reis cantam em suas letras; É o amor que Warsan Shire, rupi kaur, Ryane Leão e Santina tão lindamente poetizam; É o amor de Katiúscia Ribeiro relendo a filosofia de Kemet; É o amor de Aza Njeri e Anin Urasse construindo e reconstruindo escritos mulheristas africanas; É o amor que Roger Cipó traz em seus escritos quando fala de afeto; É o amor que Malcom X expressa quando vai tratar do que precisamos para realmente amarmos o que vemos no espelho; É com esse amor que Doctor King discursa sobre seu sonho e Nina Simone canta quando perde, mas apenas fisicamente, a inspiração que Martin era/é.
Amor é espiritualidade, latente, potente, preto, poesia.
É sobre esse amor que eu quero falar. É esse amor que eu vou usar pra olhar pra cada pessoa que passar em minha vida, seja da maneira mais ínfima, pequena e até mesmo ruim. Eu vou olhar com esse amor. E por mais que eu esqueça e em determinados momentos não o faça, Sankofa, como Wade Nobles traz, é: “Se você esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstruir”. É isso que eu to fazendo, eu to reconstruindo o meu amor.
E não, não é um amor ingênuo, não é um amor condescendente, não é um amor manipulável e troxa, não é um amor de dependência como muitas vezes fui ou quis acreditar que era. É um amor de humanidade. É um amor de potência e de cura. É um amor movedor de estruturas. E isso realmente independe de quem passar em minha frente, já me cobrei muito por isso, mas hoje a história é outra.
Porque eu sei não amar, eu apenas não quero.
Se tem uma coisa que eu sei enquanto mulher negra, é como se pode sofrer ao ser desumanizada e desumanizar, e, portanto, eu sei como não agir com amor. A violência faz parte do meu cotidiano. Mas a situação é que: pra me tirar dessa lógica de humanidade e amor, é preciso muito empenho, agressão e destruição e, de verdade, vocês não querem ver quando eu ajo assim.
Esse texto é sobre isso. É sobre como eu voltei a me entender enquanto uma mulher negra que vivencia o amor, que vive de amor. Como eu retornei à minha integralidade, a quem eu sou e quero ser. É sobre o retorno à minha potência em minhas relações, na minha profissão, minha dança, minha espiritualidade. Em terapia, yoga, meditações, rituais de cura e também nos meus afetos, os mais diversos, eu restitui esse retorno.
Eu retomei esse centro e eu não quero mais sair. Eu escolhi aqui estar e eu escolho todos os dias aqui permanecer.
Se relacionar pra mim é isso, é vivenciar isso. E eu posso dizer hoje em dia que eu me orgulho. Eu me orgulho dessa escolha que faço cotidianamente porque foi ela que me tirou das estradas mais escuras que já adentrei. Literalmente.
E nada disso eu construí sozinha e, por isso, eu agradeço.
Agradeço a Ancestralidade que me guia a todo momento, à minha família que me reconfigura, cuida, ama e jamais me abandona, às pessoas pretas e não pretas ao meu redor que fortalecem isso rotineiramente. E agradeço à mim e às escolhas que fiz, porque mesmo em meio ao caos, eu escolhi viver, ser feliz e não apenas sobreviver. Por mim e por todas e todos aqueles que vieram antes e virão depois.
Agradeço ao movimento de mulheres negras que me ensinou sobre bem viver. Aos homens negros que, a partir de meu pai, me ensinaram sobre cuidado e proteção. Eu agradeço.
Esse texto é sobre Amor. E hoje, eu to muito, mas muito feliz de conseguir escrevê-lo assim.