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Enquadro

31 de agosto de 2015

Texto: Pedro Borges

Sou quem mais morre por armas de fogo. Sou a maior vítima de homicídios. Sou também quem mais está preso e o principal vilão do programa televisivo Cidade Alerta.

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Eu sou negro.

E quem diz isso sou eu e os Mapas, tanto da Violência e do Encarceramento, como das Mortes Matadas por Armas de Fogo.

Sou também animalizado, visto como agressivo e aos olhares da polícia, um criminoso em potencial. Se ponho um boné, um jaco e me enegreço, torno-me um alvo para o braço armado do Estado.

Por isso, conto a vocês esta história.

“Acabou galera, a polícia acabou com a festa. Vizinho está reclamando muito, é vereador da cidade. Não tem jeito”. Anuncia um dos moradores da república.

Era um domingo à noite e eu e meu amigo, mais branco do que o racismo da polícia, estávamos em uma festa. Éramos calouros e, por isso, empolgados com o mundo universitário. Naquela noite, então, decidimos ir à casa de alguns colegas para beber.

Sempre soube da minha negritude, afinal os apelidos de infância não permitiam que me escondesse por detrás de qualquer sombra da branquitude. O enegrecer da minha alma, porém, viria somente meses mais tarde. Mas um fato naquela noite me ajudaria a entender onde a sociedade escolheu ser o melhor lugar e o dos meus iguais.

“Lima, vamos ae?”.

“Vamos sim, Borges. Já está tarde também. A gente ia ficar só um pouco mesmo”.

Nos despedimos de todos e saímos. Botar o pé para fora do portão foi a deixa para notar como o céu estava lindo. O escurecer em Bauru, naquela noite, foi o iluminar. As estrelas conseguiram deixar a escuridão nublada.

O caminho para a nossa casa era curto. 15 minutos seriam suficientes para chegarmos na nossa república.

“E ai Lima? O que achou do role? Daora né?”

“Ah, foi daora. Foda que eu não consegui falar com a Gabi. Tô afim dela”.

“Ah mano, relaxa. Entramos agora na Unesp. Mas e ai? Nem te perguntei. Tá curtindo o curso?”

“Ah, mais ou menos. Você sabe que eu gosto de escrever umas coisas brisadas. Não gosto de seguir o lead”.

É verdade. Lima nunca gostou de coisas quadradas e o lead jornalístico é sim um Deus quase inquestionável. Uma fórmula que dá tudo ao leitor e retira dele o mais gostoso, a imaginação.

Lima é um grande amigo. Desde a minha infância, gostamos muito um do outro. Meus pais, aliás, o adoram. É sem dúvidas um menino educado e muito companheiro.

Essa era mais uma conversa, mais um dia, mais uma festa ao lado de meu amigo. Entre as luzes que pintavam nosso rosto, uma vermelha ligou o nosso alerta. Quando senti minha cara ser manchada de vermelho, já sabia inclusive o que viria depois.

“Encosta caralho!”

A blazer com as cores bandeirantes e os quatro capitães do mato ordenaram que parássemos. Armados, impuseram a ordem social.

“Mão na cabeça, virado para a parede”.

“Abre a perna”

Os policiais começam a revista. Não tinha nada comigo. E o problema foi exatamente esse.

“Mostra o RG”

Lima pega o seu documento e trêmulo entrega para o policial. Eu estava sem.

“Como você está sem o RG? Tá louco moleque? Tira o tênis”

A conversa agora é entre eu e o Estado brasileiro e o governador Geraldo Alckimin.

Os policiais veem que não tinha nada no meu tênis. Coloco de novo.

“Policial, acabei de vir para Bauru. Eu sou estudante. Sou de São Paulo”

“É? Sou de São Paulo também. Você é de onde?”.

“Eu acabei de me mudar em São Paulo. Morava na Freguesia do Ó, agora estou na Lapa”.

“É, onde ali na Lapa? Conheço ali bem. Dê algumas referências”.

“Policial, acabei de me mudar. Não tenho muitas referências”.

“Tem certeza que mora na Lapa, moleque? Sabe o número do seu rg de cabeça?”

“Sei sim. 34 447 202 9”.

O policial se vira para o outro que está dentro da viatura.

“Checa para mim o RG dele”.

Começam então a verificar com a delegacia se tenho alguma passagem pela polícia. Mesmo que tivesse cometido algum crime e depois cumprido a pena, seria condenado naquela madruga. Para a concepção da polícia, eu não poderia andar aquela hora da noite, principalmente sem documentação.

O policial então confirma que não tenho nenhuma passagem pela polícia e se vira para mim.

“Olha, estão liberados, mas você sabe que não pode ficar andando de madrugada sem RG, ainda mais você que é…”.

Ouço isso com um olhar ensurdecedor. Não foi necessário completar a frase para explicitar o que já estava escancarado desde o início para quem tem a cor da noite.

Nessas terras, todos admitem o racismo, mas ninguém é racista. É proibido colocar o seu ódio racial para fora. Parece até proibido ousar dizer, negro, ou preto.

Depois dos policiais saírem e retomarmos o caminho para a nossa casa, meu amigo tentou me consolar. Não queria papo. Queria caminhar calado e deixar aquela raiva fermentando.

Ali, me enegreci um pouco mais. Ali, o espírito de Malcolm X me dominara sem eu nem saber.

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