Marcela Lisboa é jornalista e colabora para o Alma Preta. Na primeira produção da repórter, ela apresenta a crise como uma oportunidade para a população negra pensar em estratégias de se fortalecer economicamente.
Texto / Marcela Lisboa
Imagem / Mídia Ninja
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Fui convidada para iniciar um ciclo de escritos, relatos e escrevivências aqui no Alma Preta e aceitei o desafio. Hoje, especialmente, em primeira pessoa. Acho injusta uma escrita que não passe por uma apresentação. Não minha, mas da origem particular deste ponto de vista que seguirá.
Era noite de culto das crianças na Assembleia de Deus no morro do Sereno, no Complexo da Penha, zona norte do Rio. Amendoim (9) tira uma nota de dois reais do bolso e põe no envelope para ofertar. “Você pode pedir pelo seu pai, sua mãe, sua avó. Pede qualquer coisa pra Deus”, eu lhe disse. Ele, com seus olhos grandes e pele bem retinta escreve no papel em letras garrafais “DINHEIRO”.
Amendoim recebeu o apelido dos amigos porque desde os sete vende produtos no BRT. Ele não pediu pela sua casa, seus amigos e nem por melhores notas escola. Aos nove anos, ele sabe bem qual é a origem de seus problemas.
Por muito tempo falar de dinheiro foi (ou ainda é) uma questão para os mais diversos campos da negritude, sobretudo entre os que fizeram escola nos movimentos sociais de tradição de esquerda. Não era revolucionário falar de algo que poderia acentuar as contradições do capitalismo, alguns diziam. A lógica das possibilidades de um mundo menos desigual estaria na socialização da riqueza.
Bem, como socializar uma riqueza que nunca foi acumulada por mãos negras?
Kendrick Lamar costuma exaltar o poder e a ancestralidade africana em suas músicas (Foto: Grammy)
A frase “entre a esquerda e a direita eu permaneço preto” pode parecer clichê, mas se enquadra perfeitamente num contexto político de superação de um projeto de nação e brasilidade promovidos pelo sociólogo Gilberto Freyre, sobretudo a partir de seu clássico (ou nem tanto) Casa Grande e Senzala (1932).
Para ele, havia uma distinção “clara” entre os que se adaptam às instituições e os que sobreviviam nas margens. Com o tempo, a inserção em estruturas de poder como a Igreja, o Exército ou o Estado, fez com que famílias negras pudessem sentir a prova de uma vida confortável. Ali se estabelecia uma escassa e minguante classe média negra. Como alguns dos casos citados em “Tornar-se negra”, de Neusa Sousa.
A ascensão social por meio dos concursos públicos gerou a possibilidade da estabilidade financeira neste grupo. De acordo com dados do Siape (Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos) de 2015, 32,3% dos servidores pesquisados eram pretos ou pardos. Hoje alguns dos setores já implementam a política de cotas raciais. Talvez pela forte presença e participação nos movimentos sociais de esquerda à época.
Falar de dinheiro sempre pareceu uma questão ínfima diante de prioridades de pauta, como o genocídio da juventude ou o acesso a educação e saúde. Mas será que a falta desse debate não abriu um buraco entre as possibilidades de conquistas?
Na outra ponta, um pequeno grupo criava seus próprios vínculos e tentativas de sobrevivência pela margem, assim como o pequeno Amendoim. Em São Paulo, capital econômica do país, o assunto começou a mudar. Diante de uma das maiores crises econômicas mundiais com índices de desemprego entre as juventudes da Espanha e dos EUA, jovens da baixada santista começaram a fazer músicas enaltecendo o poder do dinheiro, o que ficou conhecido como funk ostentação.
Sob influência do gangsta rap e com letras que manifestam a necessidade de acumular jóias e carros, o movimento ganhou adeptos com facilidade e se estabeleceu, também, como um modelo de negócio. Não à toa o cinegrafista KondZilla inovou ao ser o primeiro a produzir conteúdos visuais recebidos com ampla aprovação pelos fãs. Seus clipes estiveram entre os dez mais vistos nos anos de 2012 e 2013 e atualmente ele é dono do maior canal de conteúdo no Youtube no Brasil.
Se não for nós por nós não vai ser ninguém. Ou vai?
A favela, em suas múltiplas expressões, pareceu apresentar uma saída mais plausível diante da urgência da escassez. Sofrendo de forma mais intensa com os efeitos da inflação, encontrou na teologia da prosperidade a resposta para uma vida mais digna .Com o poder de crédito conquistado na Era Lula veio a possibilidade de acesso a novos recursos e o básico deixou de ser privilégio de poucos.
Viagens de avião, televisão de plasma e computadores tornaram-se realidades possíveis da ponte pra cá. Um prato cheio para que Igrejas poderosas surgissem, como a que deram saltos de crescimento neste período presididas por figurões como Silas Malafaia, Edir Macêdo e R.R. Soares. A atual Bancada Evangélica aparece como resultado desta influência no âmbito socio-político (para além do religioso).
Por outro lado o empreendedorismo e a tecnologia tem mostrado respostas possíveis rumo a autonomia econômica da favela e da negritude. O fenômeno das Lan Houses nos anos 2000 são uma expressão disso. Segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 52% dos brasileiros utilizavam esse tipo de estabelecimento. O acesso a informação na tela do computador ou pelo celular garantiu a possibilidade de expansão de negócios da periferia para o mundo.
Expressões como a agência de conteúdo MOOC, em São Paulo ou o documentário “Grana Preta”, produzido pelo Gato Mídia, projeto de tecnologia no Complexo do Alemão, retratam um pouco deste modelo.
Pensar que a autonomia econômica da população negra e periférica do país pode vir de investimentos próprios ainda causa profunda estranheza. Mas foi acreditando no oposto que a empresária Jane Muniz fechou em 2016 um faturamento de 93 mihões de reais, com o Spa das Sobrancelhas.
Com exemplos como o de Jane, Kondzilla e dos internacionais Beyoncé e Kendrick Lamar, faz sentido acreditar em outros rumos possíveis a partir do empoderamento econômico. Sobretudo diante da Reforma Trabalhista. Segundo pesquisa do SEBRAE em 2015, metade dos empreendedores do país são negros. Microempreendedores Individuais em sua maioria, mas já um reflexo de que expressões como black money começam a fazer sentido por aqui.
Representando 55% do país, em 2017, a negritude movimentou cerca de 1,6 trilhão de reais, segundo o Instituto Locomotiva. A pesquisa por “cabelo crespo”, no Google, cresceu cerca de 309% nos últimos dois anos. No mesmo período de crescimento de grupos internacionais de expressão como #BlackLivesMatter, de ou de manifestações políticas como #OscarSoWhite. Coincidência ou não filmes vencedores e indicados ao Oscar como Moonlight e Corra! são símbolos de novos tempos. Tal qual o esperado Black Panther, produzido pela Marvel. Um fenômeno de bilheteria que já ultrapassa outros clássicos com poucos dias em cartaz. Ainda é cedo para traçar comparativos entre os afro americanos e afro brasileiros, mas na medida em que a crise política, econômica e social se acentua, as possibilidades também aparecem.
Em mandarim, crise e oportunidade são representadas pela mesma palavra, wēijī.
Enquanto o conservadorismo, o discurso de ódio e os ataques aos poucos direitos conquistados crescem, as oportunidades se mostram cada vez mais possíveis.
Foi assim com a Paraíso da Tuiuti, que em 2017 teve um de seus carros desgovernados e gerou um acidente que feriu 19 pessoas e levou uma ao óbito, mas que este ano, ao lado da Acadêmicos do Salgueiro, deu um show na avenida e, como disse Hélio Santos, o professor e presidente do Instituto Brasileiro de Diversidade, “Em uma hora o que a Lei 10.639 não fez em 15 anos”.
A escritora Conceição Evaristo já havia alertado sobre as vozes que recolhem em si a fala e o ato, os mais jovens apelidaram de “geração tombamento”. Mas a verdade é que isto é sobre oportunidades em meio ao caos. Sobre negritude em primeira pessoa.