“Negra Palavra – Solano Trindade”, em cartaz no Rio de Janeiro até 19 de fevereiro, é um espetáculo completo, fruitivo e sensível, como a poesia do mestre; Crítica de teatro, Aza Njeri é doutora em literaturas africanas e pós doutoranda em filosofia africana
Texto: Aza Njeri* | Imagem: Mariama Prieto
Quer receber nossa newsletter?
Você encontrá as notícias mais relevantes sobre e para população negra. Fique por dentro do que está acontecendo!
Com dois andares do Teatro Poeira lotados e uma enorme fila de espera, reestreou em 14 de janeiro no Rio de Janeiro o espetáculo “Negra Palavra – Solano Trindade” sob a direção da dupla Orlando Caldeira e Renato Farias. O primeiro também atua e assina a excelente direção de movimento, e o segundo, assina o roteiro construído totalmente por poemas de Solano, fazendo com que a dramaturgia, seja, na verdade, um fruitivo passeio pela poética de um dos mais importantes nomes da Literatura (Afro)Brasileira.
O Poeta do Povo, pernambucano e neto de escravizados, acreditava no poder refletor coletivo da arte, debruçado por uma lírica dura, crua, tensionadora do real com alto grau de labor estético traduzidos em poemas como “Bolinhas de gude” e “Gravata colorida”. No palco, vemos a criação cênica das mesmas líricas trabalhadas por uma iluminação certeira de Rafael Sieg e transmissoras de uma estética objetiva focada no todo do conjunto performático de cada cena, bonito de ver.
Destaque para a interpretação do poema “Tem gente com fome” congregadora do corpo, movimento, ritmo, som, luz e texto costurando a peça inteira como uma agulha que nos espeta com doses de realidade. As performances são limpas, efeito causado não apenas pelo jogo de luz, mas sobretudo pela escolha acertada dos tons pastéis feitos pelas equipes de direção de arte e de figurino.
Em cena são dez atores: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Leandro Cunha, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypolito. Dez faces de Solano, encarnadas em tonalidades, corpos e atuações completamente diferentes em si, mas em unidade com o todo da obra de arte.
A escolha pelas alfaias para conduzir a cadência dos poemas reivindica o lugar tão caro do tambor para a literatura de Solano, conjugadas pela direção musical de André Muato e pelo belíssimo trabalho de corpo dos atores que trazem a ancestral dança hambone (Pattin’Juba) afro-americana e caribenha. Esse estilo origina-se dos africanos do Congo que, sequestrados para a Amérikkka e proibidos de usar os tambores, passam a utilizar seus corpos como instrumentos transmissores da musicalidade, um dos valores civilizatórios africano e afrodiaspórico.
A presença dos orixás está na medida, com a performance de Yemonja de Drayson Menezzes corporificando a ancestralidade. A meu ver, entretanto, a senhora das águas e dos oris poderia ser um pouco mais lenta e menos bailarina que a encenada.
Não exime-se de falar sobre o genocídio do povo preto, principalmente pela materialização dela na morte de Ton Torres, ator e um dos idealizadores iniciais do projeto; e a performance de “Lincharam um homem” seguida pelo pesado silêncio da lucidez da mensagem transmitida quase me fez levantar e aplaudir.
“Negra Palavra – Solano Trindade”, em cartaz no Rio de Janeiro até 19 de fevereiro, é um espetáculo completo, fruitivo e sensível, como a poesia do mestre. Fruto da organização e união do Coletivo Preto e a Companhia de Teatro Íntimo, mostrando que a arte resiste e é fôlego. Ao fim do espetáculo, eu estava emocionada e com a sensação de ter assistido a uma obra de arte que coloca no centro a obra poética de Solano Trindade. Que venham muitos prêmios. Asé.
Ficha técnica
Poesias: Solano Trindade
Direção Geral de Orlando Caldeira e Renato Farias
Roteiro: Renato Farias
Elenco: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Leandro Cunha, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypólito
Direção Musical: André Muato
Direção de Movimento: Orlando Caldeira
Direção de Atores: Drayson Menezzes
Assistente de Direção: Thati Moreira
Direção de Arte: Raphael Elias
Assistente de Arte: Uirá Clemente
Figurino: Isaac Neves
Iluminação: Rafael Sieg
Comunicação Visual: Juliana Barboza
Videomaker: Thiago Sacramento
Fotografia Artística: Thiago Sacramento e Leandro Cunha
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Direção de Produção: Eudes Veloso
Produção Executiva: Thati Moreira
Idealização: Renato Farias
Produção: Saideira Produções
Realização: Coletivo Preto e Companhia de Teatro Íntimo
* Aza Njeri é doutora em literaturas africanas e pós doutoranda em filosofia africana. É crítica de teatro e literatura, poeta, pesquisadora, professora e mãe. Para conhecer mais sobre o seu trabalho, acesse o canal no YouTube.