Historiador e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira, Henrique Oliveira escreveu para o Alma Preta sobre como a política de segurança pública do Rio de Janeiro fere o direito à vida de negros e pobres
Texto / Henrique Oliveira | Imagem / Reprodução
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Na semana passada, no canal do YouTube da Antonia Fontenelle, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, sugeriu que os suspeitos não saíssem de casa com um fuzil, mas sim com uma bíblia, porque se saíssem com fuzil a polícia iria matar.
Desde a sua campanha para o governo carioca, o ex juiz federal vem defendendo a política criminosa do “abate”, na qual a polícia iria “mirar na cabeça e fogo”. Quando esse governador foi eleito, publiquei um texto também no Alma Preta, dizendo que a sua política de segurança iria “brincar” de tiro ao alvo com a população negra e pobre.
Pois bem, desde que esse governador assumiu a Polícia do Rio de Janeiro houve recorde de pessoas mortas nos ditos confrontos, sendo que a polícia carioca é a que mais mata no Brasil. A cada 10 pessoas mortas pela polícia no Rio de Janeiro, 9 são negras ou pardas, segundo dados do Instituto de Segurança Pública.
Nesses últimos cinco dias, seis jovens foram assassinados por “bala perdida” que sempre encontra corpos negros ou execução policial no Rio de Janeiro. O que ganhou destaque, no entanto, foi a não vinculação dessas vítimas com o tráfico de drogas, mesmo com a insistência da polícia em criminalizá-las com o objetivo de construir a legítima defesa que dá base ao auto de resistência.
A estratégia da polícia de criminalizar a vítima foi questionada pelo apresentador do jornal Bom dia Brasil, Chico Pinheiro: “E a polícia diz às vezes que ele era traficante, como se o fato de alguém ser traficante justificasse uma ação de violência, de balear e de matar”. A apresentadora da GloboNews, Leilane Neubarth, não conteve as lágrimas após a exibição da reportagem sobre os jovens assassinados.
Contudo, a imprensa brasileira precisa fazer uma grande autocrítica e assumir a sua parcela de culpa nesse processo. A própria narrativa jornalística em grande medida sempre buscou legitimar a violência policial, fragilizando o direito de defesa por meio de programas televisivos policialescos, que exibem suspeitos como se fossem condenados, além de contribuírem para a representação dos homens negros enquanto suspeitos/criminosos no imaginário social.
Desde que surgiu a identificação criminal, por exemplo, a imprensa passou a buscar por iniciativa própria, algumas vezes, a existência de antecedentes criminais para construir uma “carreira criminal”, o simples termo “ter passagem”, não deixa dúvida sobre o que e quem está se falando. O objetivo sempre foi (re)produzir a desigualdade, que implica na redução de direitos e no reconhecimento da dignidade humana.
Ao tratar esses jovens como inocentes, como aqueles que foram mortos “sem merecimento”, a imprensa visa criar uma crivo que na realidade não existe do ponto de vista do Estado. Esses mecanismos que visam enquadrar a conformação da cidadania não funcionam quando falamos de pessoas negras e pobres, nós vivemos num contexto em que acarteira de trabalho assinada, a carteira de trabalho assinada, a chuteira na mochila que alimentava o sonho de ser jogador de futebol e o filho no colo não conseguem trazer blindagem e proteção das balas disparadas. O que tem valor e que ao mesmo tempo desvaloriza a vida é a cor e a condição social de classe. São elas que informam quem deve viver e quem deve morrer.
Em nota divulgada na quarta-feira, 14 de agosto, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio de Janeiro manifestou que o governo carioca tem um “grave desleixo com a vida do cidadão, particulamente de jovens negros e pardos da periferia”, e que não há indicador de violência ou busca pela paz que justifique operações que desprezem a vida humana.
Segundo a OAB, há um recorte de “raça e classe” nas ações do Estado. A política de segurança pública é baseada na criminalização da pobreza, pobreza que é reconhecida pela cor, então a vida de seis jovens negros não envolvidos com o tráfico de drogas tem o mesmo valor daqueles considerados suspeitos, pois o objetivo final é matar jovens negros!
E com a intenção de trazer mais segurança e evitar a morte de civis em operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, a ONG Redes da Maré entregou à Justiça mais de 1.500 cartas com desenhos e textos elaborados por crianças da comunidade, para que uma Ação Civil Pública que regula e restringe as ações policiais fosse restabelecida. Essa regulação determina que em toda operação policial seja fornecida uma ambulância e que as intervenções não sejam realizadas durante o horário de entrada e saída dos alunos nas escolas.
O desembargador Jessé Tavares através de uma liminar restabeleceu a Ação Civil Pública de iniciativa da ONG Rede da Maré. Porém, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, Cláudio Mello de Tavares, questionou se as cartas realmente foram feitas pelas crianças ou se não há “algo por trás disso”. Cláudio ainda teve a coragem de perguntar se as ações policiais no Complexo da Maré traziam grave ameaça, prejudicando as crianças e contrariando o direito do cidadão.
Ao fazer esse tipo de questionamento, o desembargador Cláudio Mello ignorou que no ano passado o adolescente Marcos Vinicíus foi baleado e morto a caminho da escola por policiais num caveirão na Maré. Em 2017, a violência fechou as escolas do Rio de Janeiro por 184 dias. Realmente é necessário indagar se a política de segurança pública é uma ameaça e afronta os direitos?
Bruna Silva, mãe de Marcus Vinícius, morto no Complexo da Maré, mostra a camiseta do jovem manchada de sangue em audiência na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em 2018. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
A fala do desembargador é reveladora de como o sistema penal legitima a violência promovida pelo Estado, de como o assassinato de 1, 2, 3, 4, 5, 6 pessoas é justificável e aceitável, pois segundo Cláudio Mello: “é preciso olhar o outro lado da sociedade onde as investidas da polícia resultam em várias prisões, em vários armamentos como fuzil apreendidos e várias toneladas de drogas apreendidas”.
E novamente o desembargador despreza a realidade. As duas maiores apreensões de armamentos da história do Rio de Janeiro foram feitas fora das favelas e sem precisar disparar um único tiro. Sessenta fuzis no aeroporto do Galeão e 117 no Méier, que estavam na casa do amigo do policial Ronnie Lessa, suspeito de ter executado a vereadora Marielle Franco.
Além de negar a violência causada pelas ações policiais nas favelas, o presidente do Tribunal de Justiça criminaliza toda a comunidade quando levanta a possibilidade de que o pedido para que o Estado garanta o direito à vida dos moradores seja na verdade para beneficiar os suspeitos de tráfico de drogas. Na mentalidade do jurista, os moradores das favelas não se sentem ameaçados de verdade pelos helicópteros atirando de cima para baixo como se estivessem na segunda guerra mundial. Reclamar da ação da polícia equivale a se associar ao tráfico. É com esse olhar criminalizador, baseado na suspeição generalizada que o poder judiciário encarcera negros em massa e legaliza execuções políciais.
De acordo com o secretário de Governo do Rio de Janeiro, Cleiton Rodrigues, o governo lamenta essas mortes, assim como as outras que ainda podem acontecer. Vejam, eles já tem em mente que podem morrer pessoas para além dos ditos suspeitos, foi assim com a garota Maria Eduarda, baleada dentro da escola, são meros “danos colaterais”.
Aliás, o governo do Rio de Janeiro, diz que está combatendo “narcoterroristas”, uma nova denominação criada para desumanizar mais ainda quem eles estão matando. Porém, esse mesmo governo diz que a milícia atua como uma máfia, de forma “subterrânea e não explícita”. Ora, esse diferenciamento não foi à toa. Chamar a milícia de máfia é uma forma de relativizar a sua violência, sendo que a milícia mata, sequestra e extorque. Só que a milícia é formada por membros do Estado, por isso que a classificação é mais ponderada, que no fim das contas é uma forma de conivência.
Em 2017, o então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, disse que um tiro em Copacabana é uma coisa e que um tiro na favela da Coréia era outra. Essa fala resume todo o modelo de segurança pública brasileira montado desde a escravidão, que é realizar controle social em que o papel do Estado é proteger uma minoria branca da maioria negra. Não existem erros, insucesso e excessos, pelo contrário, a política de segurança da burguesia branca é exitosa.
Historiador e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira, Henrique Oliveira escreveu para o Alma Preta sobre como a política de segurança pública do Rio de Janeiro fere o direito à vida de negros e pobres
Texto / Henrique Oliveira | Imagem / Reprdução
Na semana passada, no canal do YouTube da Antonia Fontenelle, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, sugeriu que os suspeitos não saíssem de casa com um fuzil, mas sim com uma bíblia, porque se saíssem com fuzil a polícia iria matar.
Desde a sua campanha para o governo carioca, o ex juiz federal vem defendendo a política criminosa do “abate”, na qual a polícia iria “mirar na cabeça e fogo”. Quando esse governador foi eleito, publiquei um texto também no Alma Preta, dizendo que a sua política de segurança iria “brincar” de tiro ao alvo com a população negra e pobre.
Pois bem, desde que esse governador assumiu a Polícia do Rio de Janeiro, bateu seu recorde de pessoas mortas nos ditos confrontos, sendo que a polícia carioca é a que mais mata no Brasil. A cada 10 pessoas mortas pela polícia no Rio de Janeiro, 9 são negras ou pardas, segundo dados do Instituto de Segurança Pública.
Nesses últimos cinco dias, seis jovens foram assassinados por “bala perdida” que sempre encontra corpos negros ou execução policial no Rio de Janeiro. O que ganhou destaque, no entanto, foi a não vinculação dessas vítimas com o tráfico de drogas, mesmo com a insistência da polícia em criminalizá-las com o objetivo de construir a legítima defesa que dá base ao auto de resistência.
A estratégia da polícia de criminalizar a vítima foi questionada pelo apresentador do jornal Bom dia Brasil, Chico Pinheiro: “E a polícia diz às vezes que ele era traficante, como se o fato de alguém ser traficante justificasse uma ação de violência, de balear e de matar”. A apresentadora da GloboNews, Leilane Neubarth, não conteve as lágrimas após a exibição da reportagem sobre os jovens assassinados.
Contudo, a imprensa brasileira precisa fazer uma grande autocrítica e assumir a sua parcela de culpa nesse processo. A própria narrativa jornalística em grande medida sempre buscou legitimar a violência policial, fragilizando o direito de defesa por meio de programas televisivos policialescos, que exibem suspeitos como se fossem condenados, além de contribuírem para a representação dos homens negros enquanto suspeitos/criminosos no imaginário social.
Desde que surgiu a identificação criminal, por exemplo, a imprensa passou a buscar por iniciativa própria, algumas vezes, a existência de antecedentes criminais para construir uma “carreira criminal”, o simples termo “ter passagem”, não deixa dúvida sobre o que e quem está se falando. O objetivo sempre foi (re)produzir a desigualdade, que implica na redução de direitos e no reconhecimento da dignidade humana.
Ao tratar esses jovens como inocentes, como aqueles que foram mortos “sem merecimento”, a imprensa visa criar uma crivo que na realidade não existe do ponto de vista do Estado. Esses mecanismos que visam enquadrar a conformação da cidadania não funcionam quando falamos de pessoas negras e pobres, nós vivemos num contexto em que a farda da escola, a carteira de trabalho assinada, a chuteira na mochila que alimentava o sonho de ser jogador de futebol e o filho no colo não conseguem trazer blindagem e proteção das balas disparadas.
O que tem valor e que ao mesmo tempo desvaloriza a vida é a cor e a condição social de classe. São elas que informam quem deve viver e quem deve morrer. Em nota divulgada na quarta feira, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio de Janeiro manifestou que o governo carioca tem um “grave desleixo com a vida do cidadão, particulamente de jovens negros e pardos da periferia”, e que não há indicador de violência ou busca pela paz que justifique operações que desprezem a vida humana.
Segundo a OAB, há um recorte de “raça e classe” nas ações do Estado. A política de segurança pública é baseada na criminalização da pobreza, pobreza que é reconhecida pela cor, então a vida de seis jovens negros não envolvidos com o tráfico de drogas tem o mesmo valor daqueles considerados suspeitos, pois o objetivo final é matar jovens negros!
E com a intenção de trazer mais segurança e evitar a morte de civis em operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, a ONG Redes da Maré entregou à Justiça mais de 1.500 cartas com desenhos e textos elaborados por crianças da comunidade, para que uma Ação Civil Pública que regula e restringe as ações policiais fosse restabelecida. Essa regulação determina que em toda operação policial seja fornecida uma ambulância e que as intervenções não sejam realizadas durante o horário de entrada e saída dos alunos nas escolas.
O desembargador Jessé Tavares através de uma liminar restabeleceu a Ação Civil Pública de iniciativa da ONG Rede da Maré. Porém, o presidente do Tribual de Justiça do Rio, Cláudio Mello de Tavares, questionou se as cartas realmente foram feitas pelas crianças ou se não há “algo por trás disso”.
O presidente do Tribunal ainda teve a coragem de perguntar se as ações policiais no Complexo da Maré traziam grave ameaça, prejudicando as crianças e contrariando o direito do cidadão. Ao fazer esse tipo de questionamento, o desembargador Cláudio Mello ignorou que no ano passado o adolescente Marcos Vinicíus foi baleado e morto a caminho da escola por policiais num caveirão na Maré. Em 2017, a violência fechou as escolas do Rio de Janeiro por 184 dias. Realmente é necessário indagar se a política de segurança pública é uma ameaça e afronta os direitos?
A fala do desembargador é reveladora de como o sistema penal legitima a violência promovida pelo Estado, de como o assassinato de 1, 2, 3, 4, 5, 6 pessoas é justificável e aceitável, pois segundo Cláudio Mello: “é preciso olhar o outro lado da sociedade onde as investidas da polícia resultam em várias prisões, em vários armamentos como fuzil apreendidos e várias toneladas de drogas apreendidas”.
E novamente o desembargador despreza a realidade. As duas maiores apreensões de armamentos da história do Rio de Janeiro foram feitas fora das favelas e sem precisar disparar um único tiro. Sessenta fuzis no aeroporto do Galeão e 117 no Méier, que estavam na casa do amigo do policial Ronnie Lessa, suspeito de ter executado a vereadora Marielle Franco.
Além de negar a violência causada pelas ações policiais nas favelas, o presidente do Tribunal de Justiça criminaliza toda a comunidade quando levanta a possibilidade de que o pedido para que o Estado garanta o direito à vida dos moradores seja na verdade para beneficiar os suspeitos de tráfico de drogas. Na mentalidade do jurista, os moradores das favelas não se sentem ameaçados de verdade pelos helicópteros atirando de cima para baixo como se estivessem na segunda guerra mundial. Reclamar da ação da polícia equivale a se associar ao tráfico. É com esse olhar criminalizador, baseado na suspeição generalizada que o poder judiciário encarcera negros em massa e legaliza execuções políciais.
De acordo com o secretário de Governo do Rio de Janeiro, o governo lamenta essas mortes, assim como as outras que ainda podem acontecer. Vejam, eles já tem em mente que podem morrer pessoas para além dos ditos suspeitos, foi assim com a garota Maria Eduarda, baleada dentro da escola, são meros “danos colaterais”.
Aliás, o governo do Rio de Janeiro, diz que está combatendo “narcoterroristas”, uma nova denominação criada para desumanizar mais ainda quem eles estão matando. Porém, esse mesmo governo diz que a milícia atua como uma máfia, de forma “subterrânea e não explícita”. Ora, esse diferenciamento não foi a toa.
Chamar a milícia de máfia é uma forma de relativizar a sua violência, sendo que a milícia mata, sequestra e extorque. Só que a milícia é formada por membros do Estado, por isso que a classificação é mais ponderada, que no fim das contas é uma forma de conivência.
Em 2017, o ex secretário de segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, disse que um tiro em Copacabana é uma coisa e que um tiro na favela da Coréia era outra. Essa fala resume todo o modelo de segurança pública brasileira montado desde a escravidão, que é realizar controle social em que o papel do Estado é proteger uma minoria branca da maioria negra. Não existem erros, insucesso e excessos, pelo contrário, a política de segurança da burguesia branca é exitosa.