Assassinato de jovem negro em supermercado no Rio de Janeiro e a falta de comoção social indicam que vivemos sob uma sociedade perigosa para quem é negro; na mesma medida em que cresce a repressão a esse grupo, tenta-se negar a todo momento a existência do racismo
Texto / Pedro Borges
Imagem / Charge Latuff
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Pedro Gonzaga, jovem negro de 19 anos, foi assassinado no dia 14 de fevereiro, no Rio de Janeiro (RJ), estrangulado por um segurança em frente aos demais clientes. Pedro agora compõem a assustadora estatística brasileira de homicídios. Somente em 2017, segundo o Atlas da Violências do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 62.517 pessoas foram assassinadas, sendo que dessas, 71,5% eram negras.
A violência contra a comunidade negra e os demais grupos marginalizados, porém, não é de agora e não se restringe aos índices de homicídio. O Brasil é um dos países que bate recorde no feminicídio, nos índices de estupro contra mulheres, no assassinato de LGBTs, e é também a terceira maior população carcerária do mundo com números que apenas crescem e recaem de maneira desigual sobre mulheres e homens negros.
Achille Mbembe, filósofo camaronês, é um pensador fundamental para entender o momento atual vivido pelo ocidente. Autor do conceito da necropolítica, ou a política da morte, Achille diferencia a ideia da análise de biopolítica de Foucault, de quem muito se influencia.
Para Achille, o Estado aperfeiçoou o seu poder e o exerce decidindo quem vive e quem morre. Essa escolha seletiva se torna mais perversa em situações, descritas por Achille, como estados de sítio e ou exceção, característicos de algumas sociedades extremamente desiguais que precisam se utilizar da violência e do poder da morte para exercer, no caso brasileiro, a ordem e o progresso.
Nas colônias e mesmo sociedades com passado colonial, caso do Brasil, essas diferenças se tornam mais agudas, em especial, onde existe uma sociedade racializada. A raça é um dos elementos fundamentais para definir quem tem uma vida de mais ou menos valor.
Por isso, nesta lógica, Pedro Gonzaga pode e deve morrer. Em uma sociedade racializada como a nossa, em um cenário de extrema desigualdade, típica de uma estrutura com legado escravista, Pedro é um sujeito descartável. Ele não representa aquilo que se quer vivo e presente, ou seja, um corpo branco.
A tendência para os próximos anos, porém, é óbvia e assustadora. Os índices de violência devem crescer no Brasil e a seletividade racial deve ser um elemento cada vez mais presente para definir quem vive e quem morre.
Reforma da previdência, a construção de uma nova legislação trabalhista, o desejo de taxar as pessoas ricas e mais pobres de maneira similar aumentam as desigualdades sociais no país e só podem vir acompanhadas de propostas de maior controle sobre os corpos, como flexibilização do porte de armas, ampliação dos presídios e maior permissão para que policiais matem.
Por isso, é fundamental a atuação do movimento negro brasileiro para primeiro gritar que essas vidas importam. É tarefa desses agrupamentos também a missão de romper com o mito da democracia racial, o senso comum, e mostrar que o assassinato de Pedro Gonzaga é sim uma manifestação do racismo no país.
No dia 17 de fevereiro, o movimento antirracista deu uma resposta a altura do ocorrido, com manifestações em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, entre outras, com pedido de justiça pela morte de Pedro Gonzaga. Essa é mais uma demonstração de que a comunidade negra será protagonista no enfrentamento ao avanço do conservadorismo no país.
Essa ação política coordenada é fundamental, na medida em que o Brasil conseguiu desenvolver uma tecnologia de controle social sobre a comunidade negra tão sofisticada, que para a maioria das pessoas o racismo se reduz a um ato de discriminação racial, quando alguém ofende o outro a partir das características raciais do sujeito.
É preciso cada vez mais acabar com o legado de Gilberto Freyre, autor da obra Casa Grande e Senzala, e o responsável por dar um caráter acadêmico e oficial ao mito da democracia racial, onde negros e negras não são explorados ou violentados. É necessário apresentar a centralidade e a importância do determinante racial no Brasil, algo essencial para a compreensão das dinâmicas sociais, políticas e econômicas.
Pedro Gonzaga é um dos milhares de exemplos de uma política histórica e necrótica, utilizando o termo de Achille Mbembe, que vitimiza mulheres e homens negros, os sujeitos matáveis no Brasil. Como em outros tempos, mas agora com mais subsídios políticos e uma maior consciência racial da sociedade, é possível afirmar, porém, que haverá resistência e que a comunidade negra não será exterminada.