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Histórias Negras, Narrativas Brancas

14 de janeiro de 2016

Texto: Mônica Gonçalves Mendes / Ilustração: Araújo

Dias atrás estive numa aula da pós graduação da Faculdade de Medicina da Usp em que um professor – importante dentro da instituição pelo papel contra-hegemônico de denúncia que desempenha – contou sobre o “menino” negro que havia conquistado a única vaga de professor numa universidade estadual em São Paulo. O professor, que foi banca do processo seletivo, relatou minutos a fio sobre ter notado a história magnífica do menino preto periférico que venceu todos as barreiras sendo sempre o melhor em tudo. Narrou que no concurso, depois de superar 42 concorrentes, chegou a última etapa concorrendo com uma mulher branca, “filha da casa”, com uma diferença superior de 0,1 ponto em relação a ela.

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Enquanto para os membros da banca a diferença justificava a revisão das notas e do processo seletivo – e, não sejamos ingênuos, a entrada da menina – para ele a não validação desse 0,1 seria racismo. E ainda ante a essa consciência, seguiu: nos contou sobre sua argumentação, do quanto foi importante ter interpelado e constrangido a banca a esse respeito, do quanto foi laborioso e persuasivo indo contra todo o sistema e as pessoas que certamente se posicionariam em consenso pela entrada da menina, fosse do jeito que fosse – ainda que infringindo princípios éticos e agindo desonestamente. E, ao ser o rapaz eleito, descreveu como lhe deu os cumprimentos, honroso de seu papel, do trabalho árduo que fez e fizeram todos da banca, gabando-se da escolha acertada que tinham tomado.

A aula aconteceu na mesma semana quando, dias depois, uma companheira de república querida me mostrou com certo entusiasmo uma reportagem que falava sobre o homem branco que ocupou o pódio junto a Tommy Smith e John Carlos na Olimpíada de 68 – sim, falamos dos dois homens que, apropriados de seu lugar político enquanto negros, ergueram seus punhos diante de um mundo inteiro (literalmente) que os assistia como símbolo de resistência, fazendo alusão ao movimento Black Panter, em pleno processo de luta pelo reconhecimento de direitos civis dos negros nos EUA.

Tommy Carlos e John Smith fazem o símbolo dos Panteras Negras nos jogos Olímpicos de 1968

Tommy Carlos e John Smith fazem o símbolo dos Panteras Negras nos jogos Olímpicos de 1968

Intitulada “O terceiro homem”, a matéria de 2006, enaltece a solidariedade do homem branco em relação à luta negra já no subtítulo. Toda a tônica do texto é sobre o ~grande feito~ de ter sido solidário aos pretos em protesto. Ali, cientes de que eram passíveis de punição, mas aguerridos, carregando consigo todo um povo que subiu ao pódio com eles, suas dores e suas lutas, foram mais do que heróis e protagonistas, foram baluartes de parte da história universal do mundo – muito além do lugar particular e racializado em que se insiste colocar os negros. Na matéria, porém, apagados e invisibilizados (atente-se a imagem que precede a matéria!), quem brilhou foi o ‘in-sujeito’ do fato histórico, alçado na reportagem a uma posição heróica, saindo da zona de indiferença que sustentava sua invisibilidade – legítima.

No texto, a narradora descreve com detalhes a cena em que John e Tommy ajustam os detalhes da intervenção, sendo observados pelo “terceiro homem”. Na versão dela, é este terceiro homem quem “ouve intrigado”, de modo que os detalhes que humanizam e dão vida à cena – e a toda a história – deslocam o olhar da ação ativa dos pretos, que elaboram a ação, para a passiva do branco que os assiste. A autora fala desse personagem “ouvir intrigado” deslocando o protagonismo da fala e da ação para o gesto passivo de escuta; usa a palavra “kit-protesto”, nivelando nossos símbolos históricos a mera mercadoria (e mercadoria barata!); e ainda descreve que o in-sujeito “deu sugestão” diante de um impasse que se apresentou. O texto é velho, tal qual o raciocínio que o sustenta, mas estaria esse fenômeno circunscrito ao passado?!…

A última narrativa branca é recente. Divulgada pelo portal (X), mereceu minha atenção e repudio ao texto “O feminismo pelo qual se esqueceram de militar”. O texto gira em torno da narrativa de uma mulher branca, e da ação que desenvolve na periferia de São Paulo, Brasilândia. De classe média alta, formada em um dos cursos mais elitistas e brancos da USP, Psicologia (é possível ver o perfil dos alunos em www.fuvest.br), com pais formados em ensino superior, ela descreve tooooda a importância do movimento feminista negro, sua história, sua origem, sua invisibilidade, seus dramas, suas pautas, seus antagonismos em relação ao feminismo hegemônico branco (para elucidar a questão sintática e política, registro: “seus” e “suas” se referem ao feminismo negro, não à narradora, embora não seja possível perceber se essa distinção está tão evidente pra ela como aqui está feita…). A moça descreve o que “se passa na cabeça” das mulheres periféricas pretas, diz que não almejam ser chefes diante das dificuldades encontradas para isso e acrescenta que essas mulheres “não conseguiriam refletir” sobre assuntos como a redução da maioridade penal não fosse o grupo que ela conduz.

Quando me tornei psicóloga (assim como a última narradora!), a primeira coisa que me foi ensinada foi nunca nomear ou enunciar pelo outro. Porque o sujeito da enunciação é o sujeito do poder: é ele quem tem o controle de sua vida. O uso de seu discurso, a apropriação desse discurso por ele mesmo, a tomada da narrativa de sua própria vida, são as chaves da transformação de sua condição.

É curioso e mesmo impressionante como não há possibilidades ínfimas de que as histórias negras sejam transformadoras e catárticas quando as narrativas são brancas. Nesse sentido, ainda que em circunstancias diferentes (que ocorram em ambientes diferentes e falem de personagens distintos), o que une as três histórias é o mesmo bom e velho olhar do colonizador, para quem os negros são sempre coadjuvantes, personagens secundários de sua própria história, aqueles por quem se deve falar, aqueles que não podem ocupar o primeiro lugar quando um branco está em segundo. Nas três histórias, à revelia do ato ou lugar heróico que ocupa cada um desses negros – sejam os históricos campeões olímpicos, sejam os poucos e festejados negros que viraram doutor a partir de sacrifícios de vida de muitos, sejam as pretas periféricas que lutam diariamente para sobreviver – eles são apenas coadjuvantes cuja vitória, superação e destaque se deveram a ação de um… branco!

É um colonialismo discursivo, portanto simbólico, mas que segue nos tornando reféns. É expressão de poder da branquitude que age como se todos os lugares, concretos e simbólicos, fossem seus. Não são. O que marca essas narrativas é um isabelismo obsceno que as perverte totalmente: então protagonista é quem colabora? Então não se questiona que essa banca não fez mais que sua obrigação ética e moral? Então quem fez o bom trabalho e é sujeito meritório são os professores, não o preto que sempre foi o melhor em tudo o que fez? E foi a solução dada pelo branco que manteve a possibilidade de protesto? Então as pretas não são capazes de pensar entre si e são as brancas da elite quem as faz conhecer o feminismo?

Para muitos, ainda permanece o erro histórico de que foi princesa Isabel quem libertou negras e negros da escravidão Para muitos, ainda permanece o erro histórico de que foi princesa Isabel quem libertou negras e negros da escravidão

A última narrativa foi a mais repulsiva porque o colonialismo e isabelismo estão tão tão tão cristalizados que a produtora do texto não percebe que, ao dizer no título que “se esqueceram de lutar” pelas (pautas de) mulheres periféricas e/ou negras, genericamente, universalizando esse sujeito que se esquece, que não está racializado, acaba justamente por invisibilizar a luta árdua, aguerrida, dolorida e continua das mulheres pobres e pretas. Não é justamente contra isso que, ~ideologicamente~ texto e narradora se posicionam? E as feministas negras estão fazendo o que? Não é justamente pela ação delas que existe um feminismo negro? Será mesmo que são as mulheres pretas quem precisam de alguém que lhes auxilie a enxergar o mundo? Mas aqui quem narra e é a personagem central da narrativa é a branca solidária!

Que fique escuro: o feminismo negro e a luta das mulheres periféricas e pobres não estão esquecidos. Quem não luta por essa pauta historicamente (não só não luta em favor, como muitas vezes luta contra) são (algumas) mulheres brancas. Da mesma forma que a solidariedade desse esportista branco não foi o motor da luta pelos direitos civis americanos, da mesma forma que o gesto do professor não dirime uma história de vida de resiliência e superação.

Se nas narrativas brancas, o branco foi necessário ao feito histórico de Tonny Smith e John Carlos, é ele quem ocupa o maior lugar no pódio, é ele quem traz soluções que os outros não são capazes de elaborar sozinhos, o solidário é quem é protagonista; se nas narrativas brancas, é o branco quem merece as congratulações devido ao preto ter se superado a vida toda, por ter sido reconhecido seu desempenho que o diferenciava em 0,1 (que ele conquistou sozinho) de sua concorrente; se nas narrativas brancas é a menina branca de classe média que estuda na universidade mais elitista do país a responsável por absolver as mulheres pretas periféricas de sua condição de alienação; então temos a prova de que está na hora de tomarmos de assalto aquilo que nos tomaram os herdeiros de Isabel: a nossa possibilidade de narrar nossa própria história, em que seremos nós os personagens principais e ninguém precisará nos dar a boa ideia, a luz da sapiência, o direito ao que é de direito, a humanidade.

A manutenção do genocídio só é possível quando ele opera em nível simbólico. Quando se faz acreditar que nossos feitos não são nossos, que nossas vitórias não são nossas, que não fomos nós que as construímos (e sim os brancos), o que se anuncia é a morte. Essa morte não é do corpo e sim do espírito, mas é preciso questionar: que corpo pode se sustentar sem alma que anime a vida, sem um psiquismo que sustente a existência, daquilo de mais imaterial que garante a materialidade do corpo? Mais do que isso, é preciso entender: a que serve um corpo cujo pensamento, a história e a sapiência servem a branquitude? Sejamos narradores. Que a partir de agora (e como diz minha mãe, “já passou da hora!”), seja lei: história preta, é preto quem vai contar, não Isabel.

Mônica Mendes Gonçalves nasceu em Cambara, interior do Paraná, e é formada em Psicologia pela Unesp Bauru. Ela tem especialização em psicologia da saúde e é mestranda na área da saúde pública pela USP. Mônica compôs a Ocupação Preta da USP.

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