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Homem negro na bicicleta: ciclista ou apenas um suspeito?

Filipe Ferreira saiu de casa para gravar vídeos de manobras de bicicleta e foi alvo de abordagem truculenta da Polícia Militar de Goiás. Por que Filipe não foi considerado um ciclista qualquer?

Texto: Henrique de Oliveira | Imagem: Reprodução/YouTube

O ciclista Filipe Ferreira

Foto: CREATOR: gd-jpeg v1.0 (using IJG JPEG v62), quality = 80

31 de maio de 2021

O que era para ter sido mais um dia de gravação de vídeos fazendo manobras de bicicleta para o seu canal no YouTube, virou registro de abuso de autoridade e racismo policial para o ciclista goiano Filipe Ferreira. O jovem negro estava em um parque público na Cidade Ocidental, município do interior de Goiás, quando foi abordado por policiais militares que exigiram que ele descesse da bicicleta e colocasse as mãos na cabeça. O vídeo gravado no celular do ciclista foi publicado na sexta-feira (28) nas redes sociais e ganhou uma imensa repercussão.

Ao perguntar o motivo da abordagem, Filipe ouviu do PM com arma em punho a seguinte resposta: “Porque eu tô mandando”. Ao insistir em querer saber o por quê deveria ser revistado, o PM disse para ele colocar a mão na cabeça. O ciclista chegou a tirar a camisa para mostrar aos policiais que estava desarmado e mesmo assim os PMs insistiram para que ele colocasse a mão na cabeça, enquanto o jovem dizia que só estava andando de bicicleta. Filipe ficou de costas e ainda foi algemado. Ao perguntar o motivo pelo qual foi algemado, o PM afirmou: “Resiste para você ver o que vai acontecer contigo”. Depois disso a gravação foi encerrada.

Na postagem do vídeo feita em seu perfil no Facebook, Filipe comentou: “Não entendi o porquê apontava a arma para mim, como se fosse disparar a qualquer momento. Realmente, não entendi nada. Fiquei me perguntando se eles me abordaram por conta da cor da minha pele ou se realmente eu tinha feito algo que precisou até de algema”.

O ciclista tem um canal no YouTube com 38 mil inscritos, no qual posta diversos vídeos fazendo manobras de street bike. Assim como Filipe, todos nós temos o direito de saber o motivo pelo qual somos abordados e o policial deve estar sempre identificado. De acordo com o artigo 240 do Código de Processo Penal, os policiais só devem abordar uma pessoa para revistar quando houver um mandado judicial ou na chamada “fundada suspeita”, quando o policial suspeita que a pessoa esteja portando uma arma, drogas ou qualquer objeto que possa ser utilizado numa prática delituosa.

Além disso, o uso das algemas só é permitido em casos de resistência, receio de fuga, perigo a integridade do preso ou de terceiros, sendo necessária uma justificação por escrito por parte do policial, segundo a Súmula Vinculante nº 11, do Supremo Tribunal Federal, se não, o policial pode ser responsabilizado por abuso de autoridade. Contudo, há um sério problema para a definição da tal “fundada suspeita”. Segundo as normas jurídicas, não pode se basear apenas em elementos subjetivos, devendo ser amparada com elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, mas não é isso que acontece no mundo real.

O estudo “Quem policia a polícia”, divulgado em 2019, por estudantes da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, que analisou 137 acórdãos de apelação criminal entre 2016 e 2019, demonstrou como o poder judiciário legitima abordagens policiais totalmente subjetivas. Segundo o levantamento, 27% das alegações utilizadas para abordagens se baseiam no “local conhecido”, 21% em denúncia anônima, nervosismo (16%), conduta sugestiva (18%) e empreender fuga (21%). Esses números revelam uma total discricionariedade e ilegalidade das abordagens policiais, que se baseiam em elementos individuais e a localização das pessoas como “prova” de suspeita, já que a revista policial é uma medida de exceção, pois suspende direitos constitucionais como o de ir e vir, intimidade e privacidade.

Geralmente, quando confrontados sobre a motivação das abordagens, os policiais costumam responder que são ações de rotina, entretanto, se abordar pessoas é uma rotina do policial, essa rotina é a mais completa inconstitucionalidade. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, durante todo o ano de 2020 foram realizadas 11.961.706 abordagens e revistas pela polícia, dessas apenas 104.081 (0,87%) resultaram em prisão em flagrante. Os dados disponíveis do primeiro trimestre do ano de 2021 vão no mesmo sentido: das quase 3 milhões de abordagens, pouco menos de 28 mil (0,95%) resultaram em prisão em flagrante. Ou seja, em menos de 1% dos casos são encontrados algo de ilícito em poder das pessoas abordadas, que pudesse justificar uma prisão em flagrante pela prática de algum crime.

Filipe Ferreira não é a única pessoa negra a questionar a violência de abordagens policiais. Na semana passada, a vereadora negra Tainá de Paula (PT-RJ), relatou que no dia 27 de maio foi abordada de forma agressiva por quatro policiais militares de moto, quando trafegava de carro com sua equipe de assessores. Segundo a vereadora, os policiais militares acharam suspeito o fato de quatro pessoas negras estarem dentro de um carro blindado. “Berros de mão na cabeça, somos conduzidos coercitivamente para fora do carro. Meus assessores avisam que sou vereadora e mesmo com todos em choque, berros e ameaças.”

Todos nós sabemos que a abordagem policial é um mecanismo de seleção racial, que considera a tal fundada suspeita com base na cor e classe social dos sujeitos. Na tese de doutorado “Quando a polícia chega para nos matar, nós estamos praticamente mortos: discursos sobre genocídio da população negra no cenário de Recife-PE”, Joyce Amancio de Aquino Alves verificou que mais de 60% dos policiais perceberam que abordam mais pretos e pardos. Apesar disso, a instituição não fala sobre racismo em suas práticas e formação.

Não podemos nos esquecer que em 2013 em Campinas (SP) o comando da Polícia Militar deixou vazar uma ordem para que os policiais priorizassem a abordagem de indivíduos de cor parda e negra com idade aparente entre 18 e 25 anos, que, segundo o capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, se baseou em uma carta enviada por moradores.

Embora não tenha sido conduzido à delegacia após ser algemado, Filipe Ferreira assinou um Termo Circunstanciado de Ocorrência. À imprensa, o comandante da PM da Cidade Ocidental disse que a abordagem sofrida pelo ciclista é comum. O promotor Alexandre Rocha, do Ministério Público de Góias, responsável pela investigação, afirmou que a abordagem não foi correta, principalmente pelo uso da arma de fogo em punho pelo policial militar, que só deveria ser usada em situação extrema para salvaguardar a vida dos policiais.

Em entrevista ao programa Fantástico da Rede Globo, Filipe comentou que se sente mal e depois do fato não saiu mais de casa para andar de bicicleta como de costume. O que explica a abordagem policial a Filipe Ferreira se não o racismo, em que os policiais interpretaram que um homem negro andando de bicicleta, numa considerável velocidade, só pode ser um suspeito que cometeu um crime ou alguém em fuga por que viu a viatura? Por que Filipe não foi considerado como um ciclista qualquer?

A suspeição policial sobre as pessoas negras foi criada no período da escravidão, quando se cultivou uma desconfiança de que qualquer negro poderia ser um escravizado em fuga. E não foram poucas as pessoas negras presas por “suspeita de serem escravos”, por isso muitos negros livres e libertos precisavam transitar com as cartas de alforrias ou qualquer elemento que comprovasse sua condição de liberdade. Portanto, a imagem do negro como ameaça e alguém que pela sua condição racial esconde algo de ilícito permeia a sociedade brasileira.

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