Texto: Ellen Paes / Edição de Imagem: Pedro Borges
“Panteras Negras são animais belos e negros que nunca atacam. Mas se defendem ferozmente”.
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Essa frase, que explica o significado do Partido Pantera Negra para Auto-Defesa, no documentário Black Panthers de Agnès Varda, fixa na mente e nos remete ao passado e, infelizmente, ao presente.
O documentário acompanhou uma reunião dos Panteras Negras na cidade de Oakland, na Califórnia (EUA). Como bem diz a narração, apesar do clima de música, dança e celebração, não se tratava de um piquenique. Era um ato político em apoio a Huey Newton, um dos líderes do partido. Ele havia sido preso após um embate com a polícia que terminou na morte de um policial.
A comunidade pedia liberdade a Huey e o evento foi marcado por muitos discursos que hoje podem servir como verdadeiras referências teórico-ideológicas para a militância negra em todo o mundo.
O que se vê neste belíssimo registro de Varda é pura resistência. Uma comunidade negra completamente devastada pela violência estatal institucionalizada na figura da polícia, que é branca, em uma das cidades com maior índice de violência contra negros da época.
Os Panteras Negras defendiam que a comunidade negra deveria se defender à altura, pegar em armas, algo respaldado pela legislação americana. Na Califórnia, era permitido ao cidadão o porte de armas.
Só esqueceram que aos negros ainda não era legitimada essa tal cidadania. Ainda era um tempo que a população preta precisava lutar para ser considerada gente, bela, honesta, admirável.
O ano era 1968. Vários movimentos sociais se alastravam pelos Estados Unidos, influenciando todo o mundo. Houve guerra no Vietnã. Na Coréia do Norte. Surgiram os hippies e sua filosofia “faça amor não faça guerra”. Brancos que não sofriam perseguição policial pela cor da pele e podiam se dar ao luxo de tomar suas drogas enquanto defendiam a paz mundial. Eles não precisavam pegar em armas para se defender.
Brasil, 2016. E não estamos muito longe da realidade norte-americana de 1968. Enquanto nossos novos hippies brancos pedem “Mais Amor por Favor” em lambes pelas cidades, sete jovens são mortos a cada duas horas. Duas horas. O tempo de um longa-metragem. Isso corresponde a 30 mil jovens entre 15 a 29 anos mortos por ano, dos quais 77% são pretos e pardos. A maioria dos assassinatos é praticada por armas de fogo e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.
A condição sub-humana das prisões sempre foi uma questão problemática. A vulnerabilidade da população negra nos países que mais receberam negros africanos na condição de escravos é um fato.
No filme, Huey concede entrevista de dentro da penitenciária e denuncia maus-tratos e censura. Em um dos discursos do ato, um líder fala que a violência institucional começou desde que o primeiro negro africano foi seqüestrado e levado ao país. E que daí, todos os presos deveriam ser considerados políticos, pois são violentados por motivação racial, em primeiro lugar.
É uma verdade que resiste à história. Não precisamos ir muito longe. Aqui mesmo, em nosso quintal carioca, temos o exemplo recente de Rafael Braga e sua tripla qualificação: negro, pobre, morador de rua.
Foi preso em meio a milhares de outros jovens, como bode expiatório das manifestações de junho de 2013. A polícia disse que ele portava um coquetel molotov e Rafael defendeu que havia achado um Pinho Sol e uma água sanitária no lugar em que costumava dormir. Andava pela Lapa quando se deparou com os protestos, foi pego pelos policiais, espancado e detido. Segundo ele, o produto já não estava mais com a cor de origem e havia um pedaço de pano na boca da garrafa. Fala que foi forjado. Mas não importa. Rafael já estava condenado por quem é, antes mesmo de abrir a boca.
A realidade do sistema carcerário brasileiro não difere muito da norte-americana. Nossas penitenciárias são compostas basicamente por pretos e pobres: segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, dois em cada três presos no Brasil são negros. Um sinal de que a justiça tem cor e que nossas prisões são as nossas novas senzalas.
As comunidades periféricas também. A violência policial presente no documentário e que motivava a reação do grupo das Panteras Negras é observada e denunciada dia a dia pelo Movimento Negro brasileiro, sem tanta comoção da sociedade. Na periferia se mata todos os dias. Em 2015, chamou atenção o caso dos cinco adolescentes que foram fuzilados dentro de um carro em Costa Barros, na zona norte do Rio. Foram 111 tiros de pistola e fuzil contra eles. Esses não tiveram nem o direito à defesa. Nem mesmo à defesa falha, de uma Justiça arbitrária e racista. A mãe de um deles também morreu… de tristeza.
Armas
Havia um clima novo em 68 que já não é mais novidade em 2016. Mas se as estruturas não mudam, que o resgate daquele sentimento persevere e sobreviva.
Mais amor para quem? Hoje as armas continuam e não importam muito as leis, se o porte é legal ou não, pois negro armado será sempre o bandido.
Há outras armas também. No documentário, o orgulho negro presente na idéia do Poder Negro. O famigerado Black Power voltou à tona nestes tempos de retomada de consciência da comunidade preta. Uns chamam de moda, eu prefiro chamar de resistência.
A fala de Kathleen Cleaver, ativista e secretária de comunicação dos Panteras Negras no filme ainda faz sentido para muitas mulheres negras hoje. Ela fala da necessidade de desconstrução dos estereótipos do belo, sempre eurocêntricos, sempre brancos, sempre opressores.
À época, jovens peregrinavam às casas das pessoas para falar sobre eles, de negros para negros. Protagonizando suas histórias que por tanto tempo foram contadas por outros… brancos. Eram muitos negros analfabetos. Não havia internet.
Hoje as palavras de Kathleen viralizam nas redes sociais e ainda inspiram e estimulam meninas a assumirem seus cabelos naturais, sua estética preta, seus narizes largos, suas várias tonalidades de cores de pele negra. Black is beautiful!
Há um novo código na rua e entendo que a mensagem é: somos gente, continuamos lutando para ser gente e pegamos em armas: sejam elas quais forem.
Que sejam tranças, música, dança.
De passinho em passinho.
Nas batalhas.
Descobrir-se negro continua sendo uma afronta.
Texto escrito originalmente para o catálogo da Mostra Cinema Político, da Caixa Cultural, registrado na Biblioteca Nacional. Uma análise sobre o documentário Black Panters, de Agnes Varda