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Identidades quilombolas: o pertencimento territorial no balcão da justiça

22 de novembro de 2019

O sistema de justiça brasileiro é, também, um espaço de luta dos quilombos brasileiros; Vercilene Dias é advogada popular, mestra em direito agrário, e remanescente da comunidade quilombola Kalunga, localizada em Goiás

Texto / Vercilene Dias * | Imagem / Valter Campanato/Agência Brasil

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Após mais de três séculos de escravidão no Brasil, o fim formal do sistema escravista teve sua sentença decretada de forma incompleta em 13 de maio de 1888. Decorreu-se cem anos de um vácuo jurídico para tratar do reconhecimento do povo quilombola como sujeitos de direito ao seu território, reconhecido na Constituição de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, regulamentado pelo Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003.

Hoje, mesmo após 30 anos de garantias constitucionais, infraconstitucionais e legislações internacionais, o sistema de justiça brasileiro não reconhece direitos quilombolas.

A ideia de hierarquização produzida pelo sistema escravocrata no Brasil deixa sua marca até os dias atuais tanto na sociedade como na ação do Estado, que utiliza suas estruturas de controle para dar continuidade a hierarquização entre pessoas. A grande violação dos direitos da população negra e quilombola é exemplo disso.

Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, atualmente existem cerca de 3.386 quilombos no Brasil, entre certificados e não certificados, com 2.744 certidões emitidas.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), por sua vez, defende que esse número pode ser maior quer 5 mil, com aproximadamente 16 milhões de quilombolas em 24 estados brasileiros.

Conforme indicam outros dados do Observatório Quilombola da Comissão Pro-Índio, até hoje apenas 129 quilombos foram titulados, 52 titulados parcialmente e 1.747 processos continuam parados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia responsável pela titulação dos territórios tradicionais.

Isso é a comprovação de que, nós quilombolas temos – após tantos anos de lutas e resistência por direitos em um país majoritariamente de minorias negras – um país racista, que nega direitos fundados em preceitos raciais.

Nesse sentido, devemos nos ater ao conceito de “raça” na biologia, muito utilizado para diferenciar os animais por suas características físicas. Para os seres humanos, se observarmos o contexto de divisão da sociedade pelas características físicas, temos a cor de pele como o principal aspecto. De um lado, as pessoas de pele branca, e do outro, as pessoas de pele negra.

Segundo Nilma Lino Gomes, no artigo intitulado “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, no qual discute as dimensões do conceito de “raça”, a autora destaca que:

“O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça, não o fazem alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores, como originalmente era usada no século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas.” (GOMES, 2012, p.45).

Ainda de acordo com Nilma, a discussão sobre o negro no Brasil é carregada de opiniões racistas e “tem como base a aparência física para determiná-los como ‘bons’ ou ‘ruins’, ‘competentes’ ou ‘incompetentes’, ‘racionais’ ou ‘emotivos’.” (GOMES,2012, p. 45).

Enquanto quilombola, não dá para dizer que gostamos do termo “raça”, mas infelizmente somos separados racialmente e socialmente pela cor de nossa pele, o que nos obriga a discutir o significado da palavra “raça” não como conceito de raça biológica, mas a partir do conceito social, considerando esta uma construção social e política.

Apesar de alguns antropólogos e sociólogos tentarem desconstruir a lógica discriminatória do conceito da palavra “raça”, trazendo um conceito social para o senso comum de que os grupos étnicos são formados a partir de caraterísticas não somente físicas e biológicas, mas também genéticas e culturais. 

Portanto, todos nós pertencemos a uma mesma raça, a “raça humana”, o que nos diferencia é nossa identidade étnica, nosso processo de autoidentificação, autoafirmação, cultura, sentimento, diversidade de povos, que não se resume apenas a elementos materiais ou traços biológicos como a cor da pele, mas também a elementos imateriais.

Grande exemplo de que a diferenciação entre os seres humanos pela cor serviu para subjugar as pessoas de pele negra foi o sistema escravocrata, onde pessoas negras eram subjugadas e submetidas as piores formas de crueldades e que, até hoje, deixa suas marcas evidentes, pois a sociedade, apesar de não admitir, continua usando o argumento da raça para subalternizar as pessoas de pele negra, como se nós fossemos menos humanos.

Negritude e territorialidade

Nossos antepassados foram arrancados de suas terras para serem escravizados no Brasil, aqui foram postos como seres desprovidos de humanidade, subalternizados e tratados como pessoas inferiores ao resto da sociedade branca.

Segundo Reis e Gomes (1996), o tráfico do povo negro africano foi um dos maiores empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo moderno e o sistema econômico mundial.

Estima-se que mais de 15 milhões de africanos foram arrancados da África para alimentar o escravismo nas Américas. Desses, cerca de 40% foram trazidos para o Brasil.

O escravismo marcou profundamente a história do negro no país até os dias atuais. Criou-se um estereótipo no imaginário social de ver o negro apenas como componente da força de trabalhos braçais.

Em resumida história, nós quilombolas lutamos desde a chegada dos nossos primeiros ancestrais trazidos do continente africano até a formação quilombola. Resistimos e sobrevivemos.

Muitos de nós preferimos o isolamento como forma de proteção, como foi o nosso caso, dos quilombolas do território Kalunga. Porém, o sossego dos povos quilombolas é rompido diante das violações de nossos territórios, nossos corpos, nossas vidas.

Tivemos que nos fazer lembrar na Constituição Federal de 1988 para ter o mínimo de garantias. No artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o Estado reconhece o direito ao território titulado aos povos remanescentes de comunidades quilombolas.

Cabe lembrar que o negro, após séculos de escravidão e trabalho forçado, foi impedido de possuir terras. Com o reconhecimento do Direito Constitucional pouca coisa mudou, introduziram outro impedimento no direito constitucionalmente reconhecido de acesso à terra pelos povos quilombolas ao afirmarem que tal artigo carecia de norma regulamentadora, o que foi suprida com a edição do Decreto Presidencial nº 4887 de 20 de novembro de 2003.

O decreto, no entanto, foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo Partido de Frente Liberal (PFL), agora Partido dos Democratas (DEM). A ação ficou pendente de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) por 14 anos, até que em 8 de fevereiro de 2018 o STF reconheceu sua constitucionalidade.

Hoje, no Brasil, os direitos dos povos quilombolas tem proteção constitucional, internacional na Convenção 169 e infraconstitucional com o Decreto nº 4887/2003. Mas pasmem: apesar de todas essas garantias os povos quilombolas ainda têm que buscar ou são obrigados à acionarem o sistema de justiça para garantir direitos mínimos.

Somos grupos sociais, famílias remanescentes de pessoas que foram escravizadas. Nos distinguimos do restante da sociedade pela nossa identidade étnica, nossa ancestralidade, nossas formas de organização política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais que desenvolvemos durante nossos processos de resistência e territorialização para manter e reproduzir nosso modo de vida característico em um determinado território construído.

Território este que transcende a noção de terra dada pelo direito estatal e a sociedade capitalista. Para nós, quilombolas, a noção de território está ligada à nossa identidade cultural e construção de uma territorialidade de sentido.

Desafios e resistências

A luta pelo território possui papel central na luta pelos direitos quilombolas, além de outros direitos essenciais de todo ser humano, como ter uma vida digna. É na luta pelos direitos territoriais que o racismo e a violência contra quilombolas reproduzem seus impactos individuais e sobre todo o quilombo. 

A exemplo da prática de calúnia e difamação e de ameaças aos integrantes do quilombo, com a pretensão de desestabilizar lideranças e por consequência, desestabilizar o povo quilombola e a luta por direitos.

O sistema de justiça exerce papel importantíssimo na luta dos direitos quilombolas. Como dito anteriormente, os quilombolas buscam neste sistema a garantia de direitos já reconhecidos e previstos na Constituição, na legislação internacional e infraconstitucional.

Nós buscamos o acesso ao sistema de justiça para defender nossos territórios e direitos já violados. Nossa terra é cobiçada, invadida, mas na maioria dos casos sempre ocupamos o polo passivo da ação, como se invasores fôssemos.

Nesse sentido, temos vários processos que correm também na justiça estadual, tendo como réu um único quilombola no polo passivo, mesmo se tratando de uma coletividade de povos quilombolas na defesa de seu território em conflito com fazendeiros, agropecuaristas e empresas.

É importante destacar que a competência para processar e julgar demandas dos povos quilombolas envolvendo os direitos territoriais é da justiça federal. As ações na esfera estadual, contra um único indivíduo do quilombo, comprovam que os quilombolas não são ouvidos para se defenderem perante o sistema de justiça enquanto uma coletividade.

A conclusão que temos é que, ao não sermos ouvidos, estamos fora do sistema de justiça. Que proteção o judiciário nos oferece se nem ao menos assegura nossos direitos já reconhecidos? Com esse dilema me pergunto a todo instante: para que serve um sistema de justiça onde nós quilombolas não temos vozes e nem vez?

Seja como réu ou como autor nas ações de reintegrações de posses, o racismo institucional sempre possui um protagonismo especial do outro lado na bancada do julgador, que na maioria das vezes nos nega direitos garantidos e já violados. E com um Estado ainda mais autoritário, a tendência é que as violações aumentem.

* Vercilene Dias é advogada popular da Terra de Direitos e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Mestra em direito agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Remanescente da Comunidade Quilombola Kalunga, em Cavalcante, Goiás.

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