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Lado de fora do armário: a afetividade lésbica negra

20 de agosto de 2018

A artista Isabela Alves escreveu para o Alma Preta sobre a afetividade lésbica negra. Ela tratou sobre as dificuldades do amor entre duas mulheres negras em uma sociedade racista, misógina e LGBTfóbica

Texto / Isabela Alves
Imagem / Acervo pessoal

Relacionar-me com uma mulher negra está sendo um dos maiores processos de descoberta que tive. Talvez este relato não sirva para a imensa maioria de mulheres, no entanto, sei que muitas irão se identificar. Certamente, é preciso fazer os famosos recortes, então eu, mulher negra de pele clara, faço uma carta aberta à minha família, dizendo sobre a experiência de estar apaixonada por mulher negra de pele mais escura. Só esse recorte já dá muito pano para a manga.

Então, recomeçando, cara família,

Sou uma criança homossexual. E isso não é doença, muito menos motivo de desespero. Quando se é criança, não se entende o limite do desejo e do brincar, do sexual e do lúdico – o corpo apenas sente coisas e agora, já grande, consigo perceber o quanto eu já alimentava certa orientação sexual. Eu me lembro das bonecas que eu tinha: elas não eram amigas, eram namoradas. Eu me lembro dos filmes que assistia: o mocinho não despertava o desejo que as mulheres despertavam.

Por ser negra de pele clara, minha sexualidade foi colocada em jogo desde cedo. Ser a mais feia da sala te faz pensar coisas horríveis para conseguir afeto ou escapar da solidão. A estética é algo colocado às meninas negras desde muito cedo – não podemos ser bonitas demais, nem feias demais. É necessário existir nesse meio-termo para agradar os homens brancos. Pois bem, eu não quero agradar os homens, muito menos os brancos.

Ser lésbica não é querer ser menino. Não, não existe o homem da relação. Como disse, as bonecas eram mulher e mulher, esposa e esposa, namorada e namorada. Não há a existência de homem. Não há. Não há.

Depois, toda e qualquer relação com homem passa a ser algo estranho. Passa-se pela fase de se apaixonar por homens brancos a rodo, como se fosse uma onda muito forte, que assola a nossa mente. As paixões são doentias e hipotéticas, e nos consomem de dentro para fora. Não é confortável, nem gostoso. Dói. Até hoje, dói. Forçar uma pessoa a construir fantasias sexuais e afetivas com um ser que não se gosta é uma modalidade de violência.

Mas isso não se trata de culpa. Trata-se de percepção e consciência. Estamos caminhando para um mundo em que as meninas não se sentirão pressionadas a se apaixonar por homens. Ou por mulheres.

No entanto, todas essas vivências são traumáticas para nós, mulheres negras que se afetam por mulheres negras. Aqui é necessário adentrar um pouco mais. Apaixonar-se por mulheres não é uma escolha, chave ou um botão que se aperta. Não é um erro, ou “pane” no sistema. É uma paixão, como qualquer outra. Porém, o nosso país passou pelo processo de escravidão no qual pessoas negras vindas de África foram forçadas a servir pessoas brancas colonizadoras, a se separar da família, a deixar sua cultura e lar.

Neste processo de escravidão, muitas coisas em relação ao campo da afetividade e do amor foram mudadas, alteradas e violentadas. Uma delas é a preferência de relação. As mulheres negras eram secundárias no campo do afeto: os homens brancos as tratavam como objeto sexual, enquanto construíam famílias e sonhos com as mulheres brancas. Engravidavam as negras e faziam-as ter filhos não desejados. Só que, no momento do “vamos ver”, as brancas eram colocadas no altar.

Então, instaurou-se no nosso país a cultura da negação da mulher negra. Ou somos um casinho, um affair, uma amante, ou somos a mulher que a família do homem não aceita. Ou da mulher branca… De qualquer forma, existe rejeição desse afeto com mulheres negras. Há a hiperssexualização também, assim como o branqueamento. Todos os fatos são advindos da escravidão, o maior golpe que esse país já teve, e que os países africanos também tiveram.

Portanto, sim, eu me relaciono com uma mulher negra. Entendo a necessidade da afrocentralidade, e que todo e qualquer afeto nesse mundo em que vivemos terá os resquícios da escravidão, e apenas em uma relação com uma mulher negra conseguirei ser plena, viver livre e intensamente, e poderei confiar nos meus. Esse afeto não é um mar de rosas, pois vem carregado de inúmeras experiências ruins e de perdas, porém, vocês sabem a alegria de escutar:

“É a primeira vez em que me sinto feliz com alguém.”

“Eu me sinto muito em paz com você.”

Ou, de dizer:

“Eu te amo”?

É quase amedrontador, é real.

Família, espero que fiquem felizes com tudo isso. Não estou me relacionando com o príncipe no cavalo branco, nem com o homem perfeito. Meu amor não será branco, não será fálico, não será másculo. Será um amor de uma mulher negra, com medo e incertezas, com e para outra mulher negra, com também medos e incertezas.

É um amor real. Concreto. É um edifício em construção.

Caso queiram, May Agontinme, minha companheira, falará no dia 25 [sábado] sobre perspectivas lésbicas pretas no Museu da Diversidade Sexual, a partir das 14h. Bora todo mundo ver a mozão.

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