Há diferentes versões sobre como e quando exatamente teria começado a lavagem da escadaria e do adro da igreja Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador, na Bahia, mas sabe-se que esta tradição se mantém viva há mais de dois séculos. A festa em homenagem ao Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim é branca, católica, e sempre realizada no segundo domingo após o Dia de Reis. A lavagem, porém, é negra e com raízes no candomblé, cultura fundada no Brasil a partir da organização política de africanos aqui, na diáspora.
E o que mais me encanta na lavagem é o seu caráter de insubordinação. Apesar da grande mídia e das redes que atuam no setor turístico (hotéis, cias. aéreas, restaurantes) explorarem imagens, cores, narrativas que fazem crer na existência de uma democracia por meio do sincretismo religioso, o festejo nasceu do enfrentamento ao racismo. Na minha leitura, segue como um grande símbolo da luta negra pela vida, em sua plenitude.
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O mito
“Oxalá quem guia!”, como bem cantou Luedji Luna. Por isso, antes de seguir, voltemos a atenção ao seguinte itan:
Certa vez, Oxalá decidiu visitar Xangô. Antes da viagem, sua esposa sonhou com manchas escuras em suas vestes. Pediu à Oxalá para que não fosse. Ele ignorou, mas procurou Orunmilá, o senhor do destino, que consultou o oráculo e alertou para não sair de casa. Mas Oxalá insistia na longa viagem. Mesmo contrariado, Orunmilá orientou que Oxalá levasse três mudas de roupa, sabão da costa e banha de ori. Além disso, avisou que não poderia negar, nem pedir nada a ninguém pelo caminho. O odu exigia absoluto silêncio no percurso. Oxalá seguiu, em suas vestes brancas, empunhando o opaxorô.
De repente, avistou Exu aos pés de uma árvore, que lhe pediu ajuda para acomodar uma bacia de dendê sobre a cabeça. Seguindo o seu odu, Oxalá o ajuda mas suja toda a sua roupa. Segue então até um rio, se lava com o sabão da costa, passa a banha de ori no corpo, faz um ebó com a roupa suja, despacha e segue. Adiante, encontra Exu mais duas vezes. Em uma delas, carregando um balde de adin e, na outra, carvão. Em ambas, pede ajuda e Oxalá não pôde negar. Se suja de novo e repete todo o ritual. Perto de Oyó, Oxalá vê o cavalo que havia dado à Xangô. O cavalo o reconhece e anda ao seu lado. Os guardas do reino procuravam o animal que havia desaparecido. Quando o avistam, gritam, acusando Oxalá de roubo. Ele nada podia dizer, como determinou o odu. Os guardas o agridem e encarceram. Oxalá fica preso por sete anos.
Nesse período, o reino de Oyó cai em decadência. Atordoado, Xangô procura Orunmilá. O sacerdote lhe revela que há um homem vestido de branco, preso injustamente. Uma grande busca começa em todas as prisões. Oxalá estava em um calabouço, sujo e debilitado. Envergonhado, o rei se curva diante do grande orixá. Em seguida, ordena a lavagem de todo o palácio. É Xangô, o maior dos Obá, quem carrega Oxalá até um dos aposentos reais. Ele também ordena que seus soldados peguem água para o banho de Oxalá, em absoluto silêncio. Xangô prendeu os guardas injustos e mandou construir uma choupana para os símbolos e pedras de Oxalá. Prometeu que seu martírio jamais seria esquecido. Ainda hoje se rememora a longa viagem do senhor funfun até Oyó. Ainda hoje as Águas de Oxalá seguem purificando.
Resistência à hegemonia branca
No passado, na quinta-feira que antecedia ao domingo da festa em homenagem ao Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim, os brancos colocavam os negros e negras que mantinham escravizados para realizar uma grande limpeza na igreja. Com o passar do tempo, africanos e seus descendentes que tinham suas crenças e práticas perseguidas pela sociedade racista, associaram a grande lavagem que realizavam ali às Águas de Oxalá (Àwon Omi Òsàlá), um culto ancestral à Oxala, orixá funfun criador dos homens e das mulheres, nas tradições de alguns povos sequestrados e trazidos do oeste da África. Como na cultura tradicional africana o sagrado e o profano não se dissociam, nossos antepassados trataram de introduzir as particularidades de seus ritos àquela lavagem.
Danças, batuques e bebidas chamaram a atenção das autoridades eclesiásticas que viram nisso um bom motivo para proibir a entrada dos negros na igreja. Para ser mais exata, em 1889, o arcebispo da Bahia determinou que a lavagem não acontecesse mais no interior do seu templo católico, apostólico, romano. Ou seja, meses após a “abolição” da escravatura (assinada em 13 de maio de 1888), o corpo negro estava “liberto”, porém a sua subjetividade seguia sujeita aos ataques da hegemonia branca.
Mas as mulheres negras não se subordinaram. Em cortejo, devidamente vestidas em suas indumentárias de baianas, seguiram até a igreja e puseram-se a lavar a escadaria e o adro, usando vassouras, água de cheiro e folhas sagradas.
As portas fechadas da igreja não impediram que o povo de terreiro expressasse a sua fé, a sua devoção. As portas fechadas da igreja, ainda hoje, não impedem a reelaboração do sentido de pertencimento à uma comunidade (egbe), que segue consciente sobre a importância da sua ancestralidade negro-africana para se manter de pé. E aí está também a importância do culto.
A tradição viva percorre 8 km entre a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a Colina Sagrada. Outros grupos culturais foram chegando e, graças à xenofilia negra, engrossaram o cortejo. A lavagem da escadaria e do adro da igreja Nosso Senhor do
Bonfim virou o segundo maior evento de Salvador, aglutinando todo tipo de gente.
Mas não esqueçamos o motivo do seu nascimento: INSUBORDINAÇÃO NEGRA.