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Mãe Beata de Yemanjá e as águas dos olhos de Oxóssi

No dia de Yemanjá, o jornalista Jefferson Barbosa relembra a trajetória e o legado de Mãe Beata de Yemanjá, matriarca do terreiro Ilê Axé Omiojuarô, localizado na Baixada Fluminense

Imagem: Yasuyoshi Chiba/AFP

Foto: Imagem: Yasuyoshi Chiba/AFP

2 de fevereiro de 2023

O Candomblé refunda as comunidades que a diáspora separou, reconstrói laços, numa família não consanguínea, mas da coletividade. Por exemplo, pessoas que são iniciadas juntas, são chamados irmãos de barco, reforçando esse sentido. O professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Muniz Sodré afirma que os terreiros constituem-se como focos de resistência cultural negra. Mas também funcionam como pólos de difusão de informações e trocas de saberes, que muitas vezes não são reconhecidos pela classe dominante. 

Muitos dos primeiros terreiros do Rio de Janeiro, estavam localizados no Centro da capital, devido a vários processos de urbanização e de segregação, a partir da década de 1960 as casas passaram a se instalar em regiões distantes, como na Baixada. Muito disso também por conta da necessidade de terrenos grandes, natureza e outras características importantes para o culto aos orixás. 

Durante os anos 1970 e 1980, Mãe Beata de Yemanjá voltou várias vezes a terra natal Salvador para cultivar os laços com o terreiro do Alaketu e principalmente com Mãe Olga, que foi a quem dona Maria do Carmo tutelou a criação da filha após seu falecimento. Desde que se mudou para o Rio de Janeiro manteve idas também a Cachoeira, tanto para visitar parentes como para cumprir obrigações religiosas.

O orixá fundador do Terreiro de Mãe Beata é Oxóssi, assim como no Terreiro do Alaketu, sendo a matriarca Mãe Olga do Alaketu.

Depois de morar em vários bairros do Rio, o recanto final de Mãe Beata seria em Miguel Couto, Nova Iguaçu, cidade mais populosa da Baixada Fluminense e atualmente com quase 900 mil habitantes. O terreiro mesmo só foi aberto em 1985 quando ela estava quase se aposentando do trabalho na TV Globo. Até ter todas as condições para a abertura do espaço foram muitos anos. Nesse processo Adailton teve que buscar uma autorização na 52a Delegacia de Polícia para a prática pública do culto aos orixás.

A abertura da casa trouxe para Mãe Beata a consciência mais aprofundada sobre a necessidade de prezar pela natureza, e também muita responsabilidade. Cuidados dos ritos, acolhimentos de filhas e filhos de santo, e o desenvolvimento do trabalho comunitário. Nos primeiros anos alguns filhos de santo que moravam com a família de Mãe Beata, dormiam no barracão com a ialorixá e seus três filhos mais novos.

Ela sempre repetiu que foi gestada na Bahia e parida na Baixada Fluminense, e afirmava isso porque foi nesse novo território onde se encontrou completa. Se sentia em casa, e mesmo com o esquecimento por parte do Estado, não deixou de cultivar o amor pela periferia do Rio de Janeiro. Até o início da década de 1990, a comunidade de filhos de santo do Ilê Omiojúàrô tinha cerca de 40 pessoas. 

É comum que terreiros existam próximos uns dos outros, formando uma comunidade. Segundo o historiador Luiz Antônio Simas o Ilê Omiojúàrô foi um dos que melhor cumpriu o papel de ponto de cultura, a partir da perspectiva que Gilberto Gil implementou quando foi ministro, que pensava políticas públicas entendendo que um ponto de cultura não necessariamente precisa ser um teatro, auditório ou sala de música. O ilê é essa cultura na prática, onde a cultura se produz e acontece.

Quando Mãe Beata e os filhos chegaram em Miguel Couto, na rua Francisco Antônio do Nascimento havia duas valas de esgoto, e no terreno onde seria construído o barracão só havia uma árvore, uma paineira, que foi preservada na época a pedidos da ialorixá. As plantas sempre estão muito presentes nos terreiros, dentro de cerâmicas, no solo, nas paredes, são sagradas e também por isso devem ser preservadas. De vários tipos, cada orixá tem uma planta. Daí também, desse cuidado do que é parte de si também existiu a preocupação da matriarca do Ilê Omiojúàrô com as questões climáticas. 

A construção do terreiro foi iniciada com doação de tijolos quebrados de uma olaria, primeiro foram construídas as casas dos santos, onde Mãe Beata viveu com os quatro filhos até que a moradia dela ficasse pronta. Assim também foi quando ela viveu em Realengo, antes de se mudar para Miguel Couto. No apartamento onde viviam, havia dois quartos, num quarto a família dormia e o outro ficava separado para os orixás. Em 20 de abril de 1985, com a presença de Mãe Olga do Alaketu, foi inaugurado o Ilê Omiojúàrô, Casa das Águas dos Olhos de Oxóssi. 

Nos primeiros anos, o terreiro em Miguel Couto já sediava eventos importantes para a cultura afrobrasileira, como o III Encontro Regional da Tradição dos Orixás no dia 15 de novembro de 1987, que buscava reunir forças dos diferentes cultos Ketu, Efon, Jeje e Umbanda contra o racismo religioso e a marginalização da religião. O encontro foi etapa preparatória para a primeira Conferência Estadual das Tradições dos Orixás, que também teve uma etapa preparatória no Ilê Omolu Oxum, terreiro de Mãe Meninazinha de Oxum em São João de Meriti.

A Tradição dos Orixás foi uma aliança entre lideranças de matriz africana e do movimento negro pela preservação dessas religiões e organizar reações contra ataques de neopetencostais. As igrejas adotaram um discurso de batalha espiritual, ocupando espaços na política e no cotidiano das cidades. Os organizadores foram Jayro Pereira – baiano, fundador do Instituto de Pesquisa e Estudos da Língua e Cultura Yorubá, Gésia de Oliveira, e Mãe Regina Lúcia, ialorixá do Opô Afonjá em Coelho da Rocha. 

Matéria sobre a dificuldade de manter o InDeC, que oferecia atividades para ocupar o tempo das crianças e moradores de Miguel Couto. | Jornal O Globo (abril de 1991)

Iniciativas como eventos e cursos nunca deixaram de acontecer no Ilê Omiojúàrô, por exemplo: em 1994 Mãe Beata deu início a iniciativas como o projeto Ação e Viver e o Fórum de Debates: Cidadania e Violência. No ano de 1998, o projeto Comunidade Solidária, com apoio do Governo Federal, ofereceu capacitação em informática e percussão, com jovens de várias comunidades de terreiro da Baixada. No Natal ela foi uma multiplicadora da campanha Natal Sem Fome, liderada por Betinho e a ONG Ação da Cidadania. 

Quando o Ilê Omiojúàrô completou 15 anos de abertura, em 2000, o terreiro passou por uma intensificação das atividades socioculturais. Nesse mesmo ano se iniciou a realização de oficinas sobre cultura afrobrasileira e Candomblé principalmente em escolas, faculdades e eventos com visitantes, também nesse ano gravaram um disco de cantigas de orixá. Não raramente essas atividades envolviam outros grupos étnicos nas atividades que tinham o propósito de levar a cidadania.  

Aos 81 anos, durante uma entrevista para a TV Câmara do Rio, Mãe Beata de Yemanjá reverenciou, como fez outras vezes, a contribuição dos povos indígenas para a religiosidade afrobrasileira. “Nós somos afrodescendentes, então aqui nós temos os índios, temos os caboclos que já existiam antes dos africanos chegaram ao brasil. Esse negócio de dizer que o Brasil era desabitado, não, e os índios? Nós devemos respeito a eles. Eu acho que é uma família, tornou-se uma família com mais força para nós chegarmos onde estamos. Até com o Jejes, haussás, os fons”, diz ela sobre a complexidade do Candomblé. 

O terreiro de Mãe Beata foi tombado como Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), quando recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, que segundo o IPHAN prestigia, em caráter nacional, as ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro que, em razão da originalidade, vulto ou caráter exemplar, mereçam registro, divulgação e reconhecimento público. O tombamento é importante principalmente como proteção do espaço do terreiro de intervenções que afetem a liberdade de culto, e garantir a preservação do Ilê Omiojúàrô.

No terreiro, ela seguiu o que aconteceu com ela, ensinando os mais novos e acreditando no futuro como um caminho a ser trilhado pelas novas gerações. A todos que procuraram Mãe Beata de Yemanjá, ela foi muito atenta, na escuta e na fala, para quem buscava conselhos, sua visão do mundo. Uma percepção enriquecida de muitos caminhos que culminaram nos olhos de uma das mães de santo mais populares do Brasil.

*Jefferson Barbosa é jornalista formado pela PUC-Rio, fundador da Voz da Baixada e PerifaConnection, integrante da Coalizão Negra por Direitos.

Leia também: Após cem anos, festa de Iemanjá em Salvador conta com escultura negra da orixá

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