Por: Federico Pita, cientista político e fundador do Diáspora Africana da Argentina (Diafar)
Enzo pediu desculpas. Rápido, sem “e se”, sem “mas”. É assim que se deve fazer quando se comete um erro. Ele não negou ter cantado, não falou em potencial, não negou a natureza ofensiva da letra, não acusou os ofendidos de serem “sensíveis”, não procurou desculpas, não alegou diferenças culturais. Ele pediu desculpas, ponto final.
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Assim que a reclamação do jogador francês Wesley Fofana (que em nenhum momento acusa Enzo de ser racista, mas sim denuncia o racismo da música cantada por vários jogadores da seleção argentina) foi feita, houve várias reações nas redes sociais e na mídia nacional e internacional. As primeiras foram as de outros jogadores franceses, que deixaram de seguir a conta do meio-campista, provavelmente para não se exporem a esse tipo de conteúdo. Depois vieram os pedidos de desculpas, uma enxurrada de ataques racistas contra Fofana e outros, declarações, análises, julgamentos, defesas e sentenças.
As tendências majoritárias acabaram sendo o punitivismo e o relativismo. Por um lado, a FIFA, a AFA [Associação de Futebol Argentino] e o Chelsea, cujos protocolos disciplinares resultam em sanções punitivas em casos de racismo, anunciaram que iniciariam investigações. Isso era de se esperar, pois há dois meses, no congresso anual da FIFA, foi anunciado que a campanha contra o racismo seria relançada com ênfase em sanções mais severas. Decidiu-se transformar comportamentos racistas em infrações concretas, puníveis até mesmo com a perda de uma partida, além de promover treinamento nas escolas e campanhas para tornar o racismo uma ofensa criminal.
Por outro lado, especialmente em nosso país [a Argentina], o caráter racista da canção e a gravidade da ofensa foram relativizados (tanto que se reivindica o direito de continuar a cantá-la). Os argumentos mais comuns, em ordem aleatória, foram: 1) não é racista, é apenas uma música, faz parte do folclore do futebol argentino; 2) a música diz a verdade, são todos africanos, qual é o problema de dizer a verdade; 3) o que os ingleses e os franceses podem dizer se eles são os racistas, os colonialistas; 4) Enzo não é racista, é um garoto divino, é apenas uma música, nada mais, uma coisa boba; 5) ele já pediu desculpas, o que mais eles querem?
O que mais nós queremos? Queremos que não haja racismo, queremos que não haja crianças famintas, queremos que o bolo seja compartilhado por todos, queremos que ninguém fique de fora… Queremos mudar o mundo! Mas vamos dar um passo de cada vez. Músicas, em campo ou não, que caçoam da origem racial e da orientação sexual das pessoas são músicas racistas, sexistas, homofóbicas e/ou transfóbicas. Não há como contornar isso. Não se trata de gerações frágeis que não aguentam uma piada, cantar isso é errado. Isso é negado pela fragilidade branca e pela masculinidade tóxica daqueles que não querem abrir mão do “direito de discriminar”. O fato de o racismo e o heteropatriarcado terem se infiltrado no folclore do nosso futebol não isenta ninguém da responsabilidade de romper a corrente. Por outro lado, os jogadores franceses ofendidos nasceram e cresceram na França. Não vamos falar sobre colonialismo e racismo em termos fanonianos, mas basta dizer que eles são filhos de imigrantes de antigas colônias francesas e que lhes negar a cidadania não é denunciar a hipocrisia de um império colonial, mas sim jogar sal na ferida das vítimas do colonialismo.
Nessa versão pseudo anticolonialista do relativismo, a vice-presidente [argentina] Victoria Villarruel merece uma menção à parte. A vice defendeu os cantos racistas justificando-os com base na liberdade (para discriminar), no anticolonialismo (falso), na diversidade (ela reconheceu que nosso país também foi construído por índios e negros) e na argentinidade. Vindo da mesma pessoa que, durante a campanha, reivindicou o Dia de Colombo; que faz parte de um governo que, com suas políticas públicas, fabrica cidadãos de segunda classe aos milhões; cujo chanceler comemora o fechamento do Inadi [Instituto Nacional da Argentina contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo] como uma conquista da liberdade de expressão e diz que “os chineses são todos iguais”; e cujo secretário de culto, com nostalgia inquisitorial, pede para “recuperar os valores tradicionais” que 1492 nos legou… Estamos falando de um nível de cinismo que não é bom para os cardíacos.