Quando pensamos no feminicídio negro no Brasil, é quase instantâneo que pensemos na morte biológica de mulheres negras. Principalmente depois de 2015, ano em que foi assinada a lei 13.104, que define o feminicídio como a morte da mulher pelo fato de ser mulher. Com isso, passamos a ter uma visão balizada pela lente jurídica, o que, apesar de legítimo, é apenas uma perspectiva possível sobre o assunto.
A reflexão que propomos e que vamos desdobrar nas próximas linhas é a de que o feminicídio – especialmente quando ocorre sobre copos negros – não se manifesta unicamente pela morte biológica. Entendemos o feminicídio negro como um processo gradual, que se dá a partir das múltiplas violências presentes no racismo estrutural. Diante dessa perspectiva, é indispensável compreender como os corpos de mulheres negras – sejam elas cis ou trans – foram e são marginalizados e criminalizados ao longo da história, e transformados em corpos matáveis, a quem é negada a humanidade e, assim, legitimando tais mortes como biológicas e sociais.
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Março tende a ser um momento em que diferentes grupos de mulheres negras questionam se são ou não contempladas pela memória que a data remete. Questionamos nosso encaixe na categoria mulher, que numa lente tão ampla, tende a excluir muitas vozes. A discussão que fazemos aqui dialoga com esta inquietação, na medida em que levantamos um questionamento sobre o termo “feminicídio” e que significados ele carrega quando acompanhado de um um olhar racializado. Para isso, propomos um olhar para o fenômeno do feminicídio de mulheres negras não só no âmbito biológico, ou seja, de perder a vida pela vida, mas também considerar essas mortes, como diria Achille Mbembe, em seu livro Necropolítica, como “matanças invisíveis” que denotam as formas de “morte-em-vida”.
Nesse sentido, ao olharmos para o contextobrasileiro, podemos perceber que a necropolítica, isto é, essa política de produção de morte direcionada aos corpos negros, é sistemática, propositiva e estratégica. Ao refletir sobre tal fato, podemos compreender que as mulheres negras, estando na base da pirâmide social , carregam noções necropolíticas em seus corpos. Mulheres negras sofrem tantas violências ao longo de suas trajetórias e narrativas, que o conceito de morte, nesse caso, não se restringe à morte biológica.
Para que você, que nos lê, acompanhe o raciocínio que nos trouxe até essa conclusão, trazemos alguns parâmetros de como isso se dá na prática, ou seja, como mulheres negras experimentam a morte-em-vida: tendo seus filhos assassinados em operações policiais, não tendo acesso igualitário no mercado de trabalho, sendo submetidas a condições de trabalho precarizadas, sendo inviabilizada suas formas de usufruir das políticas públicas, tendo tratamento desigual no puerpério, não sendo vistas como produtoras de conhecimento válido – na academia e fora dela, tendo seus corpos violentados sexualmente, tendo seus cabelos, traços e corpos hipersexualizados e marginalizados, entre inúmeros de outros exemplos. Essa diversidade de violências que se sobrepõem e se manifestam em diferentes etapas da vida, faz com que sejam construídas propositalmente a partir das matanças invisíveis e das formas de morte em vida.
Todas essas expressões do feminicídio negro tratadas como formas de morte-em-vida e matanças invisíveis são parte de um poder soberano que é expresso pelo Estado, na intensificação da descartabilidade dos corpos negros. A perpetuação da lógica colonial permite que nossos corpos sejam alvos dessa política de produção de morte que mata e tira nossa humanidade, sem espanto, e muitas vezes, gerando alívio àquele que coloca e mantém o corpo negro como corpo inimigo. Ou seja, a morte do outro, esse outro negro, gera alívio. Como afirma Mbembe (2018), considerar o corpo negro como um corpo descartável se torna um elemento estruturante do pensamento necropolítico.
Reforçando a noção de privilégio, podemos compreender como é construída também a noção de medo, sobretudo, do corpo negro. A materialização da relação do “Outro” com o “eu” se faz a partir de uma das dimensões também do colonialismo. Por isso, é importante que vejamos sobretudo como a mulher negra é inserida coercitivamente nesse lugar do Outro e, como estar nesse lugar, corrobora para a construção ideológica do medo. Para entender melhor acerca disso, observemos quando Cida Bento (2002) afirma que a lógica do medo direcionada ao corpo negro é um medo biológico, pois o corpo negro é limitado ao âmbito biológico.
A realidade patológica da segurança pública dentro das favelas, traz à tona a presença coercitiva das operações policiais e sua manifestação enquanto instrumento de matanças visíveis e invisíveis. Movimento de mães como “mães de Acari”, “mães de Manguinhos”, entre outros, são uma das maiores materializações da discussão que levantamos. O fio aqui tecido é compreender que mães que perdem seus filhos em operações policiais, morrem também em seu sentido simbólico. Ou seja, perder seus filhos é uma forma de morrer em vida. O “outro”, nesses casos, se estende para além do indivíduo. Nós, pessoas negras, incontáveis vezes morremos individual e coletivamente, de forma física e imaterial, direta ou indiretamente. Qual o sentimento que te invade cada vez que ouve um caso de violência sobre um corpo negro?
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As mortes direcionadas e selecionadas aos corpos negros são mortes que consideram esses corpos descartáveis, elimináveis, permissíveis de serem mortos, encarcerados, abusados. É sob o égide da lógica necropolítica do Estado se portar, que opera o genocídio da juventude negra brasileira, que conta não ”apenas” com a morte de jovens meninos negros, mas seleciona também a morte simbólica de suas mães.
Ou seja, quando refletimos sobre o medo que é construído e alimentado no imaginário de uma sociedade que é estruturalmente racista, podemos perceber que ele é intencional e faz parte de uma estratégia perversa e orgânica. Ninguém precisa dizer, explicitamente, a quem ocupa os espaços de decisão e quem operacionaliza isso no dia a dia sabe quem são seus alvos e como agir. O silêncio e a manutenção dessa lógica mortífera também fazem parte desse leque de expressões das nossas mortes-em-vida. Quando olhamos sob a ótica da branquitude, o medo do negro se relaciona com o conceito de humanidade e da sombra, pois seria o medo daqueles que não são humanos, como diz Frantz Fanon (2008). Entretanto, quando nos direcionamos para o medo sentido pelas pessoas negras, diante de todo o contexto exposto, é perceptível que vivemos com medo. Através dessa lógica, indagamos: viver com medo é estar vivo? Nós sabemos e sentimos todas essas violências, mesmo antes de tocarem nossa carne ou espírito. Vivemos face à morte, constantemente. Calculando formas de escapar de mais uma emboscada de matança invisível.
Observando sob a lógica das mulheres negras, a economia do medo opera como um mecanismo de reprodução da “morte-em-vida”. O medo seria, nesse sentido, a mais adequada palavra para materializar o feminicídio negro, pois é a partir dele que as manifestações da violência do racismo se afirmam na lógica necropolítica de conceder vida e morte.
Frente a tudo isso, finalizamos: É preciso morrer biologicamente para ser considerado morte?
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