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Mulheres negras: nem ‘super mulheres’ e nem ‘raivosas’, somos humanas

Não precisamos ser fortes o tempo todo e não precisamos carregar o peso das nossas lutas a ponto de que nos sufoquem, nos matem ou nos roubem de nós mesmas

Texto: Monique Rodrigues do Padro | Imagem: Acervo Pessoal

Mulheres negras: nem ‘super mulheres’ e nem ‘raivosas’, somos humanas

1 de abril de 2021

Para nos relacionarmos com o mundo, alguns critérios subjetivos são fundamentais para dar sentido às coisas. Entretanto, como somos fruto do meio, a maneira pela qual vemos, ouvimos, falamos e sentimos extrapola o estado de natureza, já que a convivência em sociedade é um fenômeno dinâmico e que vai sendo construído.

Ocorre que o ser humano manipula esse estado de natureza para assentar uma estrutura de dominação, hierarquia e poder. Masculinidade, Mulheridade e Raça, por exemplo, produziram arquétipos que ao longo da história brancocentrica foram construídos para preservar a imagem dessa estrutura de poder, ainda que essa alienação gerasse a opressão de outros grupos.

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Uma das dimensões dessa opressão é a ideia de que mulheres negras são naturalmente fortes, o que desencadeia ausência de afeto e cuidado a essas mulheres que são estereotipadas em diferentes níveis, impedidas de alcançar a sua subjetividade plena.

Grada Kilomba relata no livro Memórias da Plantação “o mito da mulher negra forte, usado pela branquitude para reafirmar velhos estereótipos aprisionando essas mulheres em uma representação que obstrui a manifestação de profundas feridas abertas pelo racismo.

Para a autora, esse estereótipo de “super mulher” nega o reconhecimento das verdadeiras experiências de feminilidade negra, de maneira que o racismo cotidiano provoca o silenciamento das dores e emoções desencadeando danos psicológicos. Não ensinam a essas mulheres as chaves para que gritem por ajuda, seja de cunho psicológico ou prático e muitas dessas mulheres atravessam o sofrimento em silêncio.

Leia também:  Estereótipo sobre ‘ser forte’ afeta saúde mental das mulheres negras

Segundo o estudo “Depression symptoms and hypothyroidism in a population-based study of middle-aged Brazilian women”, sintomas de depressão foram vistos mais em mulheres negras (52,8%) do que mulheres brancas (42,3%).

Outro estereótipo é o da “mulher negra raivosa”, uma figura fantasiosa que reitera a violência provocada pelo racismo, pois simbolicamente abafa as vozes dessas mulheres provocando silenciamento, como explica Grada Kilomba quando aborda a máscara de ferro utilizada no período colonial e colocada na boca dessas mulheres.

Não permitem que elas sintam raiva, medo, fraqueza e expressem os seus desejos, sem que sejam inseridas nesses dois extremos: super humanas ou subumanas. Essa dualidade ora aloca o corpo da mulher negra para o trabalho, ora para o prazer com ideias superficiais que transitam entre a “trabalhadora braçal” e a “doméstica” ou a “mulher quente” e “fogosa”.

No Simpósio Internacional de Educação Sexual, em 2015, o pedagogo Kleiton Linhares explicou que essas são representações racistas presentes no imaginário social, mas que camuflam a construção histórica do corpo dessas mulheres negras que eram abusadas em todas as dimensões na época da escravidão.

Da mesma forma, hoje esses estereótipos se reconfiguram para produzir controle social e adestramento desses corpos, como se a mulher negra estivesse sempre a serviço de alguém e a branquitude pudesse “domesticá-las”, “exotificá-las” e “coisifica-las”.

A deturpação dos corpos das mulheres negras anula o fato de que elas mesmas são responsáveis por ocupar o seu lugar e experimentar o mundo. Mesmo a construção de gênero não tolera fraqueza das mulheres negras. Como diria Sueli Carneiro: “Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis.”.

Por consequência, o campo afetivo para mulheres negras é comprometido, pois sequer são vistas como produtoras de sentidos. Assim, infelizmente, é comum que essas mulheres negras acessem apenas migalhas de afeto ou nenhum. Essas lacunas afetivas fazem com que muitas mulheres negras renunciem ao amor, pois o seu acervo afetivo é marcado por negligência, abandono e rejeição, sendo jogadas para o celibato forçado.

Para acabar com a lógica de gotículas afetivas às mulheres negras é fundamental estremecer a estrutura social, já que o conto de fadas eurocêntrico não está interessado nessas sujeitas, promovendo a subalternidade desses corpos inclusive com um cenário de violência e profundos conflitos.

Se somos a contra narrativa da ordem social, talvez precisamos aproveitar mais as lições de Bell Hooks em seu texto “Vivendo de amor” e focar no nosso crescimento interior a tal ponto que a gente se distancie dos parâmetros tóxicos de amor inventados pela branquitude que jamais alcançará os nossos corpos negros quando o assunto é afeto e amor incondicional, sobretudo porque o racismo estrutural é capaz de provocar a morte de nossa população de todas as maneiras.

Mulheres negras são 53,6% das vítimas de mortalidade materna, 65,9% das vítimas de violência obstétrica e 68,8% das mulheres mortas por agressão. No ano de 2013, houve uma queda de 9,8% no total de feminicídios de mulheres brancas, enquanto que para mulheres negras aumentaram 54,2%, de acordo com pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, realizada em 2016.

Leia também: Quase 70% das mulheres assassinadas no Brasil são negras

Nutrir o amor entre os nossos é elevá-lo ao status de “ato político”, pois o amor preto tensiona o patriarcado, o capitalismo e o racismo, já que esses pilares adoecem os nossos corpos. “É importante para nós que estamos passando por um processo de descolonização perceber como outras pessoas negras respondem ao sentir nosso carinho e amor”, argumenta Hooks.

Como diria Élida Aquino também, não precisamos ser fortes o tempo todo e não precisamos carregar o peso das nossas lutas a ponto de que nos sufoquem, nos matem ou nos roubem de nós mesmas. Quanto ao exercício do afeto que nós mulheres negras possamos aprender com Nina Simone a levantarmos da mesa quando o amor já não estiver sendo servido.

Monique Rodrigues do Prado é advogada, comunicadora, estudiosa das relações raciais e engajada na luta antirracista.

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