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Na semana que vem eu volto! Sento-me…

5 de dezembro de 2018

O jornalista e escritor Oswaldo de Camargo lança no dia 18 de dezembro o livro “Negro Drama – Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade” em São Paulo, citado na crônica a seguir

Texto / Oswaldo de Camargo
Imagem / Reprodução

Senhor diretor da Biblioteca Mário de Andrade,

A caminhada do metrô Anhangabaú até a Biblioteca Municipal, indo pela rua paralela à Xavier de Toledo, lado de baixo, é até interessante.

Pode-se sentir logo a presença de um tempo bem antigo, pois, após os degraus da pequena escadaria que existe na Ladeira da Memória, mostra-se erguido, pouco adiante, o obelisco do Piques, coisa velha de 1814, que quase ninguém sabe mais o que é.

Parei para respirar (meu fôlego já não é mais o dos meus cinco anos), parei para olhar o derredor, ouvir por instantes sussurros possíveis do século XIX, que ainda devem estar rondando o local. Perguntei a uns camaradinhas que proseavam, sentados na lateral direita da escadaria, se sabiam o que era aquela haste grande e robusta que, ali fincada, apontava para o céu.

– Sei não, falou um dos moços, mulato magrinho e risonho, dentes limpos e graúdos, mirando, sem entusiasmo, o cimo do obelisco. Falei: aqui, donde você está sentado, até lá embaixo, já perto da Nove de Julho, em tempo muito velho eram leiloados escravos, todos pretos ou de cor aproximada. Naquele tempo, falei, isso aqui era muito animado, não havia esse silêncio…

– Sei não, ele falou, e prosseguiu sua prosa, me parece que sobre uma agência no Centro que estava pegando gente desempregada, mesmo sem curso médio.

É, sim, interessante a subida por aquela rua, que vai desenhando um s, suavemente, até após uma curva mais fechada pôr você diante da Xavier.

Eu me sentia muito bem. Por sorte, tinha conseguido guardar um pouco da luz do sol da manhã para clarear meu roteiro o dia todo (primavera que presta mostra um pouco de sol, pelo menos de manhã) e, todo luminoso, atravessei a Xavier.

Na Biblioteca eu ia dar uma olhada na prova final de um livro meu que acaba de sair para leitura: Negro Drama – Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade. Creio que o texto respeita ou mesmo reverencia um dos trezentos e cinquenta que o Mário dizia ser, puxando, no entanto, para o Mário preto.

corpooswaldo

Outra coisa que o sol matinal da primavera me fez lembrar foi que durante anos praticamente “morei” por mais da metade do dia no saguão e na escadaria da Biblioteca. Eu, preto pobre, residindo em um cortiço na Vila Buarque, me misturava, com naturalidade, ao pessoal do Mackenzie, a moços que tinham passado por Paris, Londres e visitado países da Cortina de Ferro, que citavam versos em francês, inglês. Ali perto, na Martins Fontes, podíamos visitar (eu visitei pelo menos uma vez) a esplendente romancista e contista Lígia Fagundes Telles; em seu escritório na rua Marconi, visitávamos também o Guilherme de Almeida, todo embevecido por se ver cercado de tantos moços. Eu, um deles. De vez em quando ia ver, na sua sala, o Sérgio Milliet, crítico grande de arte, poeta (Ó valsa latejante!),cronista, diretor da Biblioteca. Suave, paternal (eu o achava um tanto triste), me recebia com carinho e acabou escrevendo a orelha para o meu primeiro livro- Um homem tenta ser anjo. Só hoje sei: “qui veut faire l’ange fait la bête” (Pascal), como lembrou José Pedro Galvão de Souza, professor de Ética na PUC, que prefaciou meu texto poético inicial.

As moças que se demoravam ali na entrada da Biblioteca eram quase todas lindas, sobretudo a Rose, que não sabia o que fazer com sua exuberância e loirice. As cantadas, imagino, eram aguerridas, insuportáveis; eu, congregado mariano, com distintivo e tudo, era o único do grupo que podia aconselhar, e aconselhava a Rose. Tantos anos passados, cadê a Rose?

Pois bem.

Cheguei coberto de sol. Marciano Ventura, que editou meu texto, moço corajoso (tem editado muito escritor preto), amicíssimo dos livros e deles grande conhecedor, me avisara que chegaria uns dez minutos mais tarde. Tempo, então, enquanto esperava, para rememorar. Ver se colhia um pouco, mesmo em meio ao rumor esparramado dos carros e ônibus na Xavier de Toledo, o vozerio antigo, fragmentos do riso e das discussões animadas de há tempos sobre Drummond, Proust, Hermann Hesse (que sensação a leitura de O Lobo da Estepe!), Pascal, Dostoievski. Ali ouvi pela primeira vez, dito pelo poeta Reinaldo de Castro, um soneto do nobilíssimo José Régio: Lázaro, um baque na minha sensibilidade. (“Só eu, só eu me vi roendo os ossos/ desse banquete que não era meu!”)

De vez em quando esticava os olhos para ver se perto do Estadão, na Major Quedinho, estava passando, à tardezinha, a Hilda Hilst, em companhia da Ligia Fagundes Telles. E o Juca Chaves, montado na fama, também andava por ali; atribuiu a si a chefia do nosso movimento literário Desagregacionismo, transcorrido na Biblioteca, com que a turma queria refazer (!) a literatura moderna brasileira, cheia de velhos e decadentes… Delírio!

Marciano se demorava.

Sentei-me então em uma das laterais da entrada da Biblioteca. Por direito de alma, pensei, aquele pequeno espaço também era meu, não só da Prefeitura… Do mesmo modo que a escadaria da Catedral da Sé (68 degraus!?) é dos “vagabundos e rotos” de que fala o negro Cruz e Sousa no seu afamado poema “Litania dos Pobres”, que o Evangelho de Cristo abençoa, incluso nessa bênção o Guerreiro, cachorrinho gracioso com que fiz amizade. (Guerreiro reside com seu dono, de quem ainda não sei o nome, ao rés do primeiro degrau da escadaria.)

Por direito de alma!? Não! Leitor, visitante ou reles revisitante de lembranças não pode rebaixar-se a morador de rua esparramado na escadaria da Sé.

Afoito, como que destinado só para esse ofício, o guarda acorreu: não pode, é proibido!

– Mas não tem nenhum aviso mostrando que é proibido! Espero um amigo, que deve estar chegando; meu livro é sobre o Mário de Andrade…

– Ordens superiores!

Levantei-me.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Sou cordato, dócil, por necessidade; sou um preto brasileiro. Mas na semana que vem – que haja muito mais sol , muito mais, amiga primavera! – eu volto! Por alguns instantes que seja, sento-me!

Oswaldo de Camargo

Jornalista e escritor.

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