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Monark: a banalidade do mal e a desculpa da bebida

Durante muito tempo, se negligenciou o fascismo como movimento organizado no Brasil. No entanto, o país sempre foi uma casa acolhedora para essas pessoas. Hoje temos na presidência alguém a quem David Duque, ex-líder da Ku Klux Klan, se referiu dizendo "ele soa como nós"

Imagem: Alma Preta

Foto: Imagem: Alma Preta

9 de fevereiro de 2022

O livro da Hannah Arendt ‘Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal’ pode nos ajudar a pensar. Ele é o resultado de uma reflexão sobre o processo e julgamento de um oficial alemão realizado em Jerusalém em 1961. Eichmann operava os trens que mandavam milhões de judeus para a morte no terror do regime nazista. Após ser capturado, foi colocado em uma jaula em Israel para ser julgado. Ele, para maioria de nós, pode sintetizar o pior exemplar da espécie humana: como ser capaz de ver milhões de crianças, mulheres, idosos, homens indo para a câmara de gás e não se sensibilizar? Como participar deste absurdo, deste horror inominável? Se Hitler havia se suicidado, Eichmann era o exemplar capturado do que havia de pior. 

No entanto, Eichmann se defendia com o seguinte argumento: “Não sou o monstro que fazem de mim. Sou uma vítima da falácia” (Arendt, 1999, p. 93). O advogado de defesa trabalhou com a hipótese de que “sua culpa provinha de sua obediência, e a obediência é louvada como virtude. Sua virtude tinha sido abusada pela liderança nazista. Mas ele não era membro do grupo dominante, ele era uma vítima, e só os líderes mereciam punição” (idem, ibidem). Ou seja, Eichmann só cumpria ordens. 

Arendt argumenta que Eichmann era um tipo de criminoso que só poderia ser entendido a partir da profissão do burocrata. No argumento de Eichmann, ele não poderia ser culpabilizado porque só recebia ordens do regime nazista e como poderia não obedecê-las se era essa, afinal, sua obrigação legal, trabalhista? Arendt vai nos mostrar que Eichmann, com essa justificativa, vai abrir mão da sua humanidade e da responsabilidade inerente à esta condição. Ela argumenta, então, que Eichmann não é um monstro, pelo contrário, ele é só um palhaço, uma figura banal como qualquer outra. 

São essas banalidades, no entanto, que geraram o Holocausto de milhões de judeus, ciganos, negros, pcd’s etc. A violência brutal vista no regime nazista só pode ser permitida e realizada quando abrimos mão da nossa consciência, do pensamento, da nossa capacidade humana de, ao refletir, dizer SIM ou NÃO. 

É exatamente a isso que Monark recorre ao dizer “eu estava bêbado”. Ou seja, como se, por isso, não pudéssemos atribuir responsabilidades para o seu gesto. Depois, ele ainda pede que os membros da comunidade judaica lhe ensinem, lançando mão de uma ignorância que também lhe retira a culpa. Outra tática utilizada é a  pretensa defesa da liberdade de expressão. Ora, quem seria capaz de sustentar que todos os desejos deveriam ter liberdade de se expressar, se a própria possibilidade de sociedade humana se dá pela produção de interdições e leis? Isso é um jogo retórico, apenas. A liberdade na sociedade humana só é possível a partir de limites e leis. 

É preciso pontuar também que Monark não é um caso isolado. Segundo a antropóloga Adriana Dias há cerca de 530 núcleos extremistas em atividade no Brasil atual e foram esses que melhor utilizaram as leis de flexibilização de armas. Um aumento de 270% nos últimos três anos. Não tem como discutir esse cenário fora do debate sobre o bolsonarismo e sem levar em conta a tradição histórica nazista e fascista no Brasil. 

Durante muito tempo, se negligenciou o fascismo como movimento organizado no Brasil. Documentários como “O Menino 23” despontam quase incrédulos. No entanto, o país sempre foi uma casa acolhedora para essas pessoas. Hoje temos na presidência alguém a quem David Duque, ex-líder da Ku Klux Klan, se referiu dizendo “ele soa como nós”. A Ação Integralista Brasileira, inspirada no fascismo italiano, tem um enraizamento significativo na história do Brasil e seus símbolos e sentidos são constantemente colocados por esse governo. A carta de ‘pacificação’ de Bolsonaro, depois do levante frustrado do 7 de setembro, termina com o lema do fascismo brasileiro: 

DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA.

Enfim, é preciso ter atenção a esses ‘detalhes’ que passam despercebidos, pois, como bem pontuou Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”. Preciso também pontuar que, infelizmente, o racismo tem uma tolerância alarmante na sociedade brasileira e, quando foram as vidas negras relativizada por Monark – ao defender que o racismo é uma questão de opinião e que, portanto, deveria ter o livre direito de se expressar -, a reação ficou quase que restrita aos movimentos negros. Estamos diante de velhos perigos e precisamos estar cientes e responsáveis. Deixo para terminar um poema de Brecht:

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Jonathan Raymundo é professor de história e pesquisador independente das relações raciais no Brasil

Leia mais: Por que o nazismo e o racismo anti-negro são lados de uma mesma moeda?

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