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No Brasil, o filho da empregada doméstica vale menos que o cachorro da patroa

4 de junho de 2020

Para o historiador Henrique Oliveira, o caso de Miguel Otávio, de cinco anos, que morreu após cair do 9º andar de um condomínio de luxo onde a mãe trabalhava deve ser visto sob o viés racial e não apenas como negligência

Texto: Henrique Oliveira* | Imagem: Reprodução

Na terça feira (2), a empregada doméstica Mirtes Renata foi passear com o cachorro da patroa e deixou o filho Miguel Otávio, de cinco anos, sob os cuidados da chefe e de uma manicure, que também estava no apartamento para prestar serviço. Mirtes Renata trabalha como empregada no Píer Maurício de Nassau, condomínio de luxo conhecido como “Torre Gêmeas”, no centro de Recife.

Enquanto Mirtes descia com o cachorro da patroa, seu filho começou a sentir a sua falta e passou a chorar, segundo imagens do sistema de câmeras do condomínio, a criança tentou entrar no elevador sozinha pela primeira vez e foi impedida pela patroa. As câmeras registraram o momento em que a patroa permitiu que ele entrasse sozinho no elevador e ainda apertou um dos botões no alto do painel do equipamento.

Miguel Otávio pegou o elevador no 5º andar e acabou saindo no 9º, onde escalou o parapeito onde ficavam peças de ar condicionado, na altura de 1,2 metros e se projetou, segundo a perícia, que coletou marcas do pé da criança numa aleta da grade que se rompeu. O delegado Ramón Teixeira disse que enquanto estava no elevador e andava pelo corredor do prédio, Miguel Otávio gritava pela mãe.

A patroa não teve a identidade revelada oficialmente por causa do cumprimento da nova lei de abuso de autoridade, em vigor desde o dia 3 de janeiro. Contudo, informações coletadas na rede social apontam que a mulher é Sarí Gaspar Côrte Real, esposa de Sérgio Hacker, atual prefeito da cidade de Tamandaré. Ainda segundo informações, trata se de uma família com influência no meio político e empresarial de Pernambuco.

Sarí Gaspar foi presa em flagrante, mas pagou uma fiança de 20 mil reais e vai responder em liberdade por homicídio culposo. A Polícia Civil entende que ela foi negligente, pois era responsável pela vigilância e proteção da criança durante a ausência da mãe.

Negligência? Não, racismo!

A morte de Miguel Otávio não pode de forma alguma ser compreendida apenas como uma fatalidade ou negligência da patroa da mãe e empregada doméstica. É preciso compreendê-la dentro das relações raciais brasileira por se tratar de uma criança negra que estava sob os cuidados, ou assim pensou a sua mãe, de uma mulher branca e rica.

Alguém imagina a possibilidade de Mirtes Renata colocar a filha da sua patroa sozinha para descer o elevador a fim de encontrar com os seus pais, só porque começou a chorar e sentiu falta deles? Provavelmente não. Seria obrigação da empregada descer com a filha ou até mesmo controlar o seu choro mesmo com os pais estando por perto.

O que explica a falta de paciência, cuidado e responsabilidade de Sarí Gaspar com Miguel Otávio, se não pelo fato do racismo produzir desprezo e desimportância com a vida das pessoas negras? Duvido que ela colocaria o cachorro sozinho no elevador, assim como fez com Miguel.

O racismo faz com que as crianças negras sejam mais punidas que as brancas no ambiente escolar, tratadas como mal educadas e agressivas quando não conseguem controlar as suas emoções. O racismo produz uma intolerância com processos sociais que são normais para a maioria das crianças, a exemplo de sentir falta da mãe. Foi com a intenção de se livrar do choro de uma criança negra, filha da empregada doméstica, que Sarí Gaspar colocou Miguel Otávio sozinho no elevador!

O trabalho doméstico no Brasil é predominante ocupado por pessoas negras. Em São Paulo, por exemplo, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 52% das trabalhadoras domésticas da região metropolitana são negras, número superior ao de mulheres negras no trabalho formal, que é 38%. Mirtes Renata é mais uma das milhares de mulheres negras no trabalho doméstico, que não tinha com quem deixar o seu filho.

No período escravocrata, os afazeres domésticos e de cuidado com os filhos das sinhás eram realizados por mulheres negra escravizadas, pautado na dominação de classe e inferiorização racial. Em muitas situações, as mulheres negras não só trabalhavam na manutenção da limpeza da “Casa Grande” do senhor de escravos, como chegavam até a amamentar os filhos das sinhás, deixando de fazer o mesmo com os próprios filhos.

No período pós-abolição, o trabalho doméstico foi reconfigurado para reproduzir toda a lógica advinda da escravidão, sendo um das principais dinâmicas das relações de trabalho, em que a elite branca e setores médios projetaram para manter os elementos de sujeição, subordinação e desumanização dos trabalhadores, com a intenção de resguardar hierarquias de cor. Não por acaso só em 2013 as empregadas domésticas tiveram acesso às leis trabalhistas vigentes no país para os demais trabalhadores.

A morte de Miguel Otávio ocorre também em meio a pandemia global do Covid-19, o novo coronavírus, na qual o Brasil se tornou o epicentro mundial de um vírus mortal e de contágio rápido. Contudo, as empregadas domésticas continuam a ser coagidas à comparecer ao trabalho, mesmo com o risco de contaminação. A Prefeitura de Belém chegou a inserir o trabalho doméstico como essencial após decretar um lockdown na cidade. Filhos e filhas de empregadas domésticas e diaristas lançaram em março o manifesto “Pela vida de nossas mães”, para exigir proteção individual e isolamento social às trabalhadoras domésticas.

A função do trabalho doméstico no Brasil é garantir o ócio dos brancos que compõem as camadas médias e a burguesia, que não conseguem se desgarrar desse fetiche escravocrata e estão passando a quarentena com as suas empregadas domésticas. Enquanto Mirtes passeava com o cachorro, para que ele provavelmente fizesse as suas necessidades fisiológicas e ela ainda as recolhesse, o seu filho estava recebendo um tratamento abaixo do esperado até mesmo para um animal de estimação qualquer.

* Henrique Oliveira é historiador e militante do coletivo negro Minervino de Oliveira, em Salvador, na Bahia.

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