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Nós, homens negros, precisamos ser afetados

13 de junho de 2018

O Alma Preta separou depoimentos relacionados às diversas formas de demonstração e sensação de afetividade da população negra. Neste texto, Túlio Custódio conta sobre a importância de homens negros sentirem o afeto, por inteiro

Texto / Túlio Custódio
Imagem / Gabriel Lopes (Guaru)

Três cenas, três gestos e três tempos de afetos.

Primeira cena: clipe da música Alicia Keys, da melosa e deliciosa canção “You don’t know my name”, no qual a cantora narra a mulher que está apaixonada por um rapaz e ele não parece notar quem ela é – “provavelmente não sabe nem o nome dela”. No meio da música, ela toma a coragem para ligar para ele e enunciar seu interesse em sair com ele. E lança, entre outras falas doces, um “xaveco” genuíno: “I think you’re kind of sweet” (“eu te acho de certo modo ‘doce'”). Um gesto de atenção.

Há uma atração romântica muito interessante nessa música. Nela, mesmo que pareça bobinha ou melosa, há um olhar que a personagem do eu-lírico coloca sobre o homem negro que ela gosta… Com uma certa poética cotidiana.

O mais interessante foi ver quem escreveu a letra: Keys assina a música com outros três homens negros… Aí fiquei pensando sobre o que significava aqueles homens negros escreverem junto com Keys aquela letra? O que significava essa mensagem, também feita por homens, sendo interpretada na voz feminina (e maravilhosa) de Alicia? Aí pensei no que bell hooks disse sobre como muitos homens negros se colocam sensivelmente e subjetivamente em sua produção artística (como blues e jazz, mas sem dúvida no R&B e hip hop também). Tudo que o patriarcado supremacista branco silencia em nossas emoções…

Segunda cena: no seriado “Black-Ish”, no episódio 17 da quarta temporada, a família da personagem Rainbow, que é interracial, vai visitá-la no feriado. Compõe a família os pais de Rainbow – pai branco e mãe negra -, tios de Rainbow – brancos – e a avó negra de Rainbow. Há uma discussão que ocorre em dois níveis: se as mulheres deveriam se submeter a servir um prato a seus maridos, prática repudiada pela mãe de Rainbow, ao vê-la servindo Andre; e a relação entre herança histórica e alimentação, na qual há um debate entre negros – escravidão – e judeus – holocausto.

Eis que a avó de Rainbow, até então quieta, se manifesta dizendo o quanto pouco se importava sobre quem servia quem, sobre escravidão e assim por diante. Apenas que, quando seu marido, um homem negro, era vivo, ela tinha prazer em fazer um prato para ele, pois como o mundo tratava o homem negro como menos do que um humano, o ato de fazer um prato representava demonstrar para ele que pelo alguém no mundo se importava com ele. Um gesto de carinho.

Claro que o debate estabelecido na mesa era interessante. Mas o ponto colocado ali não era de que a avó de Rainbow falava sobre todos os homens negros, todas as relações, ou estabelecia uma universalidade de ser e agir. É sobre o que ela vivia e viveu ao lado daquele homem negro com quem dividiu sua vida. Aquele homem, que chegava em casa após o mundo tratá-lo como menos do que nada. Tudo que o racismo faz com pessoas negras…

Terceira cena: a música “4:44”, do último álbum do rapper Jay-Z, com o mesmo nome. A letra da música trata de uma suposta traição feita pelo rapper contra sua esposa, Beyoncé; e o clipe, uma obra-prima complementar à música, trata sobre os sentimentos que passam pelo homem negro. Frases como “uma relação deve ser conquistada”, ou um homem narrando sobre sobreviver de um tiro, imagens de violência, festas, espetáculos: uma impressão sobre aquelas vidas negras se passarem de maneira espetaculosa, mas não no melhor sentido do termo.

Aquele conglomerado de imagens, sequenciadas pelo beat e as vozes por trás, nos remete a uma sequência de estímulos que mostram uma realidade cheia de estímulos que não levam esse homem a nenhum lugar a não ser rodar em falso sobre si mesmo. Rodar sobre um corpo fragmentado de emoções, anseios, medos e ansiedades de reconhecimento e de visibilidade. Rodar sobre maus comportamentos, más decisões, abandonos, erros rudes, violências e movimentos para morte.

Jay-Z parece reconhecer isso na letra. “I apologize”. O perdão não vem como erro de uma ação específica. O perdão não é uma ação automática de algo pontual que se fez, por estar, como humano, suscetível ao erro. O perdão é sobre responsabilidade que, em sua reflexão, Jay-Z percebeu que tinha diante dos laços de afeto que o significavam.

Seu Eu por inteiro não vem de rodar em falso sobre todas aquelas imagens. Seu Eu por inteiro vem das conexões de afeto que estão ali: sua mulher, suas crianças. A família, e as escolhas – afetivas – que envolvem quem ele é e o que pode ser. Um gesto de responsabilidade.

Ele pede desculpas. Tudo que a sociedade racista e patriarcal não quer que façamos, que nossas ações individuais passem como um atropelo, uma ação micro de uma escala histórica macro do que o colonialismo fez: ceifar vidas, afetos e sentidos. Tudo que a sociedade racista e patriarcal deseja que nós, homens negros, aquelas partes penduradas de nós mesmos, façamos…

Imagem: São Paulo Fotografia

E a afetividade com tudo isso?

A afetividade, para muitos homens negros, é um terreno estranho e inexplorado. Nossos gestos, em um mundo patriarcalizado e racializado, não nos leva a nos conectarmos. Estamos em um lugar não acessado, que dizem não ser nosso, nem de ninguém de Nós.

Sobre o homem negro se exerce um modelo de masculinidade hegemônica patriarcal que encontra, em sua estética de existir e interagir com o Outro, formas contínuas e viciadas de controlar e exercer poder: violência, descaso e isolamento como remédios para uma vida que busca poder, reconhecimento e status. Para todo homem negro que vai ler isso: essa receita nunca deu certo. Não dará.

A violência da raça nos nega humanidade, a violência dos padrões fixos de gênero nos impõe atitude de poder. Que poder? Quem é esse homem? A masculinidade hegemônica patriarcal supremacista branca impõe um modelo de performance de controle e poder a um sujeito que nunca, dentro dessa ordem social e cultural, será visto e considerado, por inteiro como sujeito pleno. Pleno, apenas, é seu estado de mimetismo social, fragmentação de subjetividades (negadas e marcadas pelas políticas da morte do racismo) e metonimização de seu corpo. O pênis pendular do homem negro, que é carregado e carrega a dignidade que ele gostaria de ter como Homem. Que homem? Quem é ele? Um pedaço? Nunca.

Negar a afetividade e o afeto positivo – e não o viciado – ou o conforto do carinho – e não o medo e a ansiedade – é um dos caminhos que para a constituição de nós, homens negros, numa sociedade colonialista e supremacista branca, se faz quase de maneira “natural”.

Nossa afetividade existe, mas segue negada por esse coquetel mortífero do ideal de homem patriarcal colonialista. E ela é a chave que conecta com a vida e o reconhecimento da existência de cuidado e atenção às vidas das pessoas que estão por perto de nós, mulheres ou de outros homens negros.

Se muitos de nós, homens negros, parássemos de tentar construir nosso modelo de masculinidade no patriarcado supremacista branco para buscar nosso amor. Se parássemos de querer sermos reconhecidos e amparados por um modelo que não concebe nossa existência plena. Se olhássemos para modelos de amor de um olhar para si inteiro, sobre o todo de nós, sujeito humano inteiro…

Para isso, talvez se possa sugerir caminhos. Três gestos que falam de três frases que passam, mas se tornam turvas, em nossas existências: Te amo, Obrigado, Desculpa. Te amo, Obrigado, Desculpa.

Imagem: São Paulo Fotografia

Dias atrás, eu e minha companheira ganhamos um quadro que dizia essas três coisas: Te amo, Obrigado, Desculpa. Penduramos em casa, e quando estava pensando sobre os três gestos de afetividade, pensei que essas três coisas de algum modo se conectam com o que estava querendo falar.

Para nós, homens negros, reatarmos nossa afetividade, seja com nossas e nossos companheira/os/cônjuges, precisamos mais disso. Precisamos ser afetados:

Um gesto de atenção. Te amo.
Um gesto de cuidado. Obrigado.
Um gesto de responsabilidade. Desculpa.

A masculinidade hegemônica patriarcal supremacista branca nos ensina a nos fraturar, fragmentar, subsistir, emular controle e violência. Nós, homens negros, precisamos ser afetados. Por três ou mais gestos de afetividade. As três cenas trazidas acima mostram alguns lugares nos quais nós, homens negros, podemos olhar e conectar nossos laços de afeto e de carinho. Nós existimos como seres que podem e merecem ser amados. Por inteiro.

É bom se sentir amado, como inteiro. Exige atenção, cuidado e responsabilidade. Nós vivemos por inteiro.

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