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Nos roubaram uma segunda vez: sobre as cinzas do Museu Nacional

13 de setembro de 2018

A Candomblecista e doutoranda em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, Karine L. Narahara, relata o que as cinzas do Museu Nacional, que foi atingido por um incêndio no inicío deste mês, significa para as populações negras e indígenas, resgatando o histórico e formas de aquisição que enche o acervo dessas instituições

Texto / Karine L. Narahara1
Imagem / Xangô, século XIX. Coleção Polícia da Corte, Museu Nacional

Os museus não são neutros na sua preservação da história. Na verdade, sem dúvida, eles são locais de esquecimento e fantasia. A forma como as exposições são construídas geralmente presume um público branco e privilegia o olhar branco. As paredes brancas significavam as escolhas dos brancos, sua agência, suas coleções museológicas e os esforços dos colonialistas. Para muitas pessoas brancas, as coleções são uma diversão agradável, uma visita nostálgica que evoca uma versão romantizada do Império (Sumaya Kassim).

Os museus costumam produzir sentimentos um tanto quanto confusos. Especialmente por serem produto direto da pilhagem civilizatória de diferentes povos. Na América Latina, a consolidação dos museus de “História Natural” está diretamente relacionada à formação dos espaços nacionais. Afinal, esses museus passam a reunir nas principais capitais tudo aquilo que provinha de lugares até então desconhecidos. Estando em exibição para um público mais amplo, essas coisas e esses corpos eram muitas vezes testemunhos materiais dos violentos processos de ocupação das novas terras2. São verdadeiros salões que amontoam “souvenires de histórias traumáticas”, como bem definiu Sumaya Kassim ao discutir a impossibilidade de decolonizar esses museus. O que quero ressaltar, fundamentalmente, é que os acervos desses museus se constituíram a partir de situações trágicas – como a exumação de cemitérios e a “coleta” de restos mortuários dos assassinados pela maquinaria colonial.

Com o Museu Nacional, consumido por um criminoso incêndio no último 2 de setembro, não foi diferente. Sendo um marco latino-americano da chamada “era dos museus”3 – ao lado do Museu Paulista, em São Paulo, e do Museu de La Plata, na Argentina, para citar dois exemplos – o Museu Nacional também se constitui neste mesmo contexto de expansão de fronteiras nacionais. Como ressalta Edmundo Pereira, à frente do Departamento de Antropologia do Museu, muitas das coisas que estavam ali guardadas e expostas são fruto de uma profunda violência. Herdeiros dos “gabinetes de curiosidades” do século XVIII, esses museus estampavam em suas vitrines a suposta exoticidade dos chamados “povos primitivos”. Ou seja: aqueles que estavam sendo subjugados e assassinados pelo aparato imperial-colonial.

As práticas científicas que forneceram as bases para a estruturação desses museus estavam pautadas na ideia de um “evolucionismo social”, de acordo com o qual negros e indígenas ocupariam os estratos mais inferiores da “evolução humana”. Estamos em um tempo em que a frenologia e a antropometria ocupavam um importante espaço nos ambientes acadêmicos na Europa e também em nosso continente. Pretendia-se, através do estudo das características físicas, avaliar a personalidade e as capacidades humanas.

É neste mesmo cenário que a Europa vive a expansão dos “zoológicos humanos”, onde pessoas provenientes de territórios recém-conquistados eram exibidas publicamente. Seja em espaços a céu aberto (como era o caso do Jardim de Aclimatação, em Paris) ou no interior dos museus. A América do Sul também testemunhou exposições semelhantes: Inakayal (uma importante autoridade Mapuche) e seus familiares foram exibidos em vida no interior do Museu de La Plata; enquanto indígenas “Botocudos” e “Xerente” foram levados para o Museu Nacional no contexto da Exposição Antropológica Brasileira de 1882. Essas exposições combinavam entretenimento para um grande público e aportes para a Antropologia Física da época.

No caso brasileiro, é importante mencionar ainda as teorias raciais circulantes entre a elite científica da época. Como bem lembrou Bárbara Cruz, na mesa de encerramento do Seminário Novembro Negro (realizado pelo Coletivo Negro Marlene da Cunha, no Museu Nacional, em 2017), João Baptista de Lacerda afirmava que em 2011 o Brasil iria finalmente transformar-se em uma nação branca, com o desaparecimento total de negros e indígenas. Lacerda foi um dos diretores do Museu na virada do século XVIII para o século XIX. É dele uma série de textos publicados na revista “Arquivos do Museu Nacional” sobre a suposta inferioridade dos “Botocudos”. Ele ministrou ainda, em 1877, o primeiro curso de Antropologia no Museu4. Na contramão das previsões racistas de Lacerda, não só seguimos vivos como também ocupamos a mesma academia que viu as teses futuristas de embranquecimento do país serem gestadas.

A cada nova matéria sobre o incêndio do Museu Nacional fala-se sobre o que a ciência perdeu. Pouco se fala sobre o que essa transformação em cinzas implica para nós, que perdemos coisas que nos foram usurpadas. Vou destacar um dentre tantos conjuntos de “peças” que estavam presentes no Museu: a Coleção Polícia da Corte. Ela era formada por objetos apreendidos pela Polícia da Corte, entre os anos de 1880 e 1887, e entregues ao então diretor do Museu, Ladislau Netto. Estas apreensões aconteciam durante as recorrentes e violentas batidas policiais nos terreiros da cidade, amplamente noticiadas pelos jornais da época5. Aliás, ao menos uma parte dos mais antigos artefatos materiais de candomblés e umbandas foram parar nas mãos da polícia. No Rio de Janeiro há uma articulação para que muitas das coisas que ainda hoje estão sob posse da Polícia Militar sejam devolvidas ao povo de santo. A Coleção Polícia da Corte estava sendo estudada pela historiadora Carolina Cabral Almeida, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com a maior presença de negros e indígenas nas universidades estávamos começando a recontar a nossa história, sob o nosso olhar, a partir da existência dessas coisas transformadas em peças museológicas. É como se com este incêndio nos roubassem uma segunda vez. Como disse um indígena Puri: “Nos negligenciam e nos destroem em vida e ainda depois de mortos”.

Uma das inúmeras postagens desoladas com as quais esbarrei nas redes sociais enunciava: “o Museu da Civilização Brasileira pega fogo”. A frase não poderia ter sido mais acertada. De fato era o museu do nosso processo civilizatório. Um processo baseado numa violenta barbárie. E por isso mesmo o Museu Nacional nos era tão importante e valioso. Ele contava sobre o que éramos enquanto “nação”. E contava também sobre o que não mais queríamos viver.

Candomblecista e doutoranda em Sociologia e Antropologia pela UFRJ.

LOPES, M. M. A mesma fé e o mesmo empenho em suas missões científicas e civilizadoras: os museus brasileiros e argentinos do século XIX. Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41, p. 55-76, 2001.

SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

SCHWARCZ, op cit.

ALMEIDA, C. Peripécias de um colecionador: Ladislau Netto e a formação de uma coleção africana no Museu Nacional. Anais do 41º Encontro Anual da ANPOCS, 2017.

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