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Nova Regulação evitará fraude no sistema de cotas

9 de agosto de 2016

Texto: Alexandre Matheus / Edição de Imagem: Vinicius de Almeida

No dia 01 de Agosto, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão publicou uma orientação normativa que institui a necessidade de comissões designadas para a verificação da veracidade da autodeclaração de negros, que se declararem pretos ou pardos, nos concursos públicos.  Nesta orientação, no artigo IV e no seu inciso 1°, está prevista a possibilidade de recurso para os não considerados negros (pretos e pardos) passarem por um processo de verificação presencial, sendo que o critério de avaliação da veracidade ou não da autodeclaração levará em consideração somente os aspectos fenotípicos (características físicas) do candidato.

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A medida vem em resposta aos vários casos de “fraude” em concursos públicos e vestibulares, que adotam o sistema de ação afirmativa para negros, por indivíduos que são socialmente lidos como brancos, possuem o fenótipo caucasiano ou não negro, afirmam e construíram suas identidades como brancos ou não negros e, portanto, são portadores da maioria dos privilégios que uma sociedade racista anti-negro como a nossa dispõem aos grupos e sujeitos não negros. Mas, por conveniência e abuso da brecha da autodeclaração, se declaram como negros para obterem mais uma vantagem sobre a população negra que se vê excluída historicamente de cargos e universidades públicas.

Dessa maneira, a orientação também vai ao encontro das denúncias que os movimentos negros, e dos negros em movimento, têm feito sobre a fragilidade da regulação do sistema de cotas que tem permitido que os indivíduos brancos, nas condições citadas acima, tenham acesso a uma política pública que não lhes dizem respeito e, sendo assim, devem ser considerados como “fraudulentos”. No entanto, devemos considerar que o sistema de reserva de vagas para negros tendo como único parâmetro a autodeclaração permitia através dessa brecha a qualquer um que se autodeclarasse negro, que se beneficiasse da política pública. Desta maneira, não poderíamos considerar esse uso como uma fraude, mas sim como um problema de regulação que agora está sendo sanado.

A partir dessas considerações iniciais, que já estavam óbvias para quem estava acompanhando o debate desde o seu início, gostaria de me dedicar na discussão, muito polêmica, gerada por jornalistas considerados progressistas que chegaram a comparar a orientação normativa emitida pelo governo federal com os experimentos realizados pelos pseudocientistas do século XVIII e XIX, que buscavam comprovar a existência de diferentes “raças humanas”; a política de Apartheid da África do Sul; e até a irônica sugestão de que as pessoas deveriam ser tatuadas como minorias ao nascerem para facilitar o processo.

Essas referências foram retiradas, mais especificamente, de dois textos: “Governo vai fazer bancas para definir quem é negro”– Leonardo Sakamoto (02/08/2016) e “APARTHEID BRASILEIRO: Governo Temer adota comitê de pureza racial” – Laura Capriglione (Jornalitas Livres, 03/08/2016). Vale ressaltar, mais para averiguar de onde esses jornalistas estão falando do que para deslegitimar a discussão levantada por eles, que os mesmos (até onde pude perceber) não se declaram como negros, ou seja, não estão passíveis de participar da política pública em debate.

Com isso, ao ler os textos citados, é perceptível a ânsia da crítica pela crítica, principalmente ao fato da orientação normativa se restringir aos aspectos fenótipos na avaliação do ser ou não negro, sem que a nenhum momento os jornalistas se propusessem a apresentar outras experiências que  permitam uma regulação alternativa para a política pública em questão que barre os sujeitos que não são o seu alvo.

Neste sentido, o texto de Sakamoto fundamenta sua argumentação a partir desses questionamentos:

“Qual legitimidade tem uma comissão constituída pelo poder vigente para dizer o contrário? Quem poderá atestar que uma pessoa não sofreu preconceito ou teve seus direitos limitados ao longo da vida por ser considerada negra em um país onde o racismo corre solto como o Brasil? Haverá uma escala de cor para ser usada como referência?”

Sinceramente, para mim esses questionamentos são típicos de quem ainda esta nadando no discurso do mito da “democracia racial” e que sustenta o argumento da mestiçagem nacional como impossibilidade de que se determinar quem é negro e quem não é. Para a primeira questão, acredito que assim como o Estado brasileiro soube muito bem quem era branco quando implantou a política de branqueamento no Brasil no século XIX, uma comissão saberá também quem é negro para acessar o sistema de cotas. Já para a segunda (sério?!), se a pessoa sofreu por ser considerada negra não foi porque ela apresentou a árvore genealógica dela, mas sim pelas características físicas (fenótipo). Por fim, a terceira, não sei se haverá uma escala de cor, mas como traz Abdias do Nascimento em seu livro  Genocídio do Negro Brasileiro- processo de um racismo mascarado:

“Um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra- ou qualquer outro eufemismo; e o que todo o mundo compreende imediatamente, sem possibilidade de dúvidas, é que se trata de um homem-de-cor, isto é, aquele assim chamado descende de escravos africanos. Trata-se, portanto, de um negro, não importa a gradação da cor da sua pele. Não vamos perder tempo com distinções supérfluas…”

Sem mudança evidente, a jornalista Laura Capriglione não melhora na argumentação. Assim como Sakamoto, se inspira em regimes de aspiração racialista, desumana e segregacionista para comparar com a medida regulamentatória adotada pelo governo federal. O primeiro o compara com o regime hitlerista da Alemanha, a segunda com o sistema utilizado no Apartheid na África do Sul. Essa ótima mistura se constitui para mim na famigerada falsa simetria. Se nestes regimes há explicitamente uma ordem de dominação racial, pelo contrário, no caso da orientação normativa vemos uma tentativa de garantia de reparação histórica aos sujeitos ainda hoje herdeiros de um sistema de subjugação racial análogo ao dos apresentados pelos jornalistas.

Racismo no Brasil é de marca, não de origem como nos EUA

A jornalista também esqueceu de afirmar que já existe um Apartheid não legalizado no Brasil e por isso é necessário que se duplique a seguridade de garantia de direitos para a população negra em um contexto em que nem as políticas de reparação são respeitadas. Não acredito que mediante os casos de “fraudes”, a revisam do critério único de autodeclaração seja um “apartheid” ou uma política hitlerista. Isso para mim é o mesmo tipo de argumento usado pelos contrários à política de cotas na data de sua instituição.

Não obstante, concordo com os jornalistas quando tento visualizar em suas críticas o limite que o fator fenótipo possa oferecer a uma política que pretende reparar “um grupamento racial/cultural/social/histórico discriminado” nas palavras da jornalista Laura Capriglione, levando em consideração que existem pessoas com fenótipo caucasiano, mas com o pai ou mãe negro.

No entanto, isto não diminui o fato da abordagem utilizada pelos comunicadores e formadores de opinião para tratar a problemática ser totalmente descabida. Sei que é problemático abordar simplesmente o fenótipo como único critério, no entanto, temos plena ciência que o racismo que se desenvolveu no Brasil foi sim via fenótipo, de “marca” para o estudioso Oracy Nogueira e não “sanguíneo” ou de origem como nos EUA. É bem polêmico, mas infelizmente temos que lidar com um trauma histórico que não foi realizado por nós negros e saber lidar, novamente, com esses casos de restituição que nunca serão plenamente justos e haverá sim contradições, porém são necessários.

Por fim, contra o raivoso ataque à medida que entra em vigor no governo golpista deixo a resposta do Presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Humberto Adami “que relata que a norma já vinha sendo trabalhada durante a administração de Dilma Rousseff e foi mantida pelo governo interino:

– Isso significa que a política de ações afirmativas tem de ser entendida como política de Estado para reparação de uma dívida histórica.”

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