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O 13 de maio e a tal abolição da escravatura

13 de maio de 2020

Em artigo, o sociólogo Tadeu Kaçula reflete sobre o processo que levou à assinatura da Lei Áurea, que nunca libertou, de fato, os negros no país. Na luta contra o escravismo, o intelectual destaca a atuação do movimento abolicionista, com nomes como o de André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco

Texto: Tadeu Kaçula | Imagem: Museu Afro Brasil e Acervo Fundação Biblioteca Nacional – Brasil

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“Pergunto ao criado, pergunto ao criador, quem pintou esta aquarela? Livre do açoite da senzala. Preso na miséria da favela.” (Mangueira, 1988)

Pensar o dia 13 de maio de 1888 e tudo que envolve a abolição da escravatura no Brasil é uma tarefa árdua e cheia de complexidades. Se a produção reflexiva se debruçar nos estudos a partir da chegada dos primeiros africanos escravizados em seus territórios e trazidos para o Brasil em meados do século XVI, certamente teremos um vasto histórico de movimentos de resistência e de luta contra a escravização dos povos africanos.

Essas lutas se deram em todo o período em que a elite branca escravista e colonial investiu para manter uma política de exploração escravizada para a produção de riquezas que garantiram a hegemonia do poder econômico e político da branquitude normativa. É possível encontrar importantes estudos sobre esses movimentos de luta e de resistência, como as diversas pesquisas publicadas pelo sociólogo e professor Clóvis Moura. Dentre elas os livros “Rebeliões da senzala”, “Quilombos – Resistência ao Escravismo”, “Dialética radical do Brasil negro”, entre outros estudos que nos dão uma dimensão mais ampla
sobre as centenas de “Quilombagem” (ataques e saques aos centros urbanos) realizadas pelos negros aquilombados.

Outro fator imprescindível na história das lutas e rebeliões contra o escravismo no Brasil foi o movimento abolicionista. Os abolicionistas jogaram um papel fundamental nas diversas frentes de combate e resistência contra a manutenção da política escravista que em outros países já havia sido extinta. Nomes como André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco foram vitais para que houvessem as dezenas de investidas do movimento abolicionista contra a escravização negra naquele contexto. Os movimentos políticos de libertação dos escravizados e escravizadas, naquele contexto, iniciaram uma “pressão” conjunta com as ações realizadas pela Inglaterra – que estava liderando um processo universal de abolição da escravidão humana – para forçar a coroa portuguesa a assinar o documento que continha a lei de libertação dos escravizados e escravizadas.

A história da abolição da escravatura no nosso país vem sendo, desde então, contada de forma deturpada, caluniosa, vã, injusta e sem o mínimo de responsabilidade com as consequências que essa mentira contada de forma institucionalizada pode causar nas vidas de milhares de herdeiros desta história falaciosa.

A antropóloga e pesquisadora Lilia Schwarcz é enfática ao dizer que não há motivo algum para celebrar. O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na época de “retardão”. Tardou demais. As estatísticas oscilam, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade absoluta de africanos obrigados a deixar o continente. E teve escravos em todo o seu território, diferente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo semelhante ao nosso, mas no norte tinha outro modelo econômico.

Quando veio a Lei Áurea, em 1888, ela saiu muito curtinha, muito pequena, muito conservadora. “Não há mais escravos no Brasil, revogam-se as posições em contrário”. Corria no plenário uma série de propostas, algumas ainda mais conservadoras, outras mais progressistas.

A antropóloga faz uma análise sobre a estrutura do racismo no Brasil com a seguinte proposição: “O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural”, considera Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros livros, de “O Espetáculo das Raças”, “As Barbas do Imperador”, “Racismo no Brasil” e “Brasil: uma biografia”.

Há exatos 132 anos, os negros privados de sua liberdade eram libertos por uma política caluniosa e sem força moral para contrariar os diversos grupos abolicionistas que já enfrentavam o racismo e a desigualdade sócio-racial que assolavam aquele período e que ainda hoje nos assombra como um “fantasma” que insiste em nos visitar.

A grande questão, sugiro, que colocou a população negra num processo de invisibilidade social e econômica no pós escravidão não foi propriamente a lei que os “libertou” no dia 13 de maio de 1888 e sim o que aconteceria com essa população no dia 14 de maio de 1888?! Até o dia 13 de maio daquele ano a população negra era sujeito ativo da economia brasileira, mas na medida em que a tal abolição é declarada, essa mesma população passa a ser sujeito passivo da economia brasileira. É impressionante como esse processo brutal de esvaziamento da presença negra no pós escravidão se deu de forma sistêmica. O negro brasileiro passa a ser tratado de “bom escravo à mau cidadão” e é condicionado a uma subvida gerenciada à sua própria sorte.

Refletir para ressignificar a nossa história pode ser o caminho para que as injustiças e os apagamentos históricos sobre as insubordinações contra o escravismo não fiquem de fora do empirismo a qual a população negra bravamente ajudou a escrever, pois enquanto essa “estória” de que os escravizados foram libertos por “compaixão” da Princesa Isabel for alimentada e ensinada na rede pública de ensino, as nossas crianças continuarão envolvidas na ciranda do jogo sujo e capcioso da branquitude normativa que se mantém no poder há séculos alienando a população brasileira com um projeto de educação pública colonizadora.

O Brasil foi o último país de todos os continentes escravistas a “abolir” a escravidão, sendo o Estado de São Paulo o último do Brasil a “encerrar o processo” e a cidade de Campinas a última. Vemos diuturnamente as entidades sociais e os noticiários explicitando o genocídio periférico de jovens negros colocando-os em um estado de criminalidade para justificar o controle étnico-social que nada mais é do que a manutenção da política higienista do século passado, que pensa um Brasil com “as-pirações euronormativas”. O Brasil foi forjado e moldado pelas mãos dos milhares de africanos que com sua contribuição à formação da sociedade brasileira crivou sua cultura, seus hábitos, seus conhecimentos, experiências, religiosidades e afins, nessa terra que, ainda hoje, insiste na tentativa de apagar essa importante contribuição.

De 1888 a 1988, não vemos a história do negro sendo contada de forma expressiva nos livros didáticos e nem nas universidades, o que nos deu a impressão de que o negro foi extinto durante cem anos da história do Brasil. Nesse sentido, é importante refletirmos sobre o processo da “abolição da escravatura” no Brasil não apenas pela perspectiva do dia 13 de maio e todo o conjunto de fatores que resultou na assinatura da lei Áurea, mas, sobretudo, é fundamental pensarmos nesse processo a partir do dia 14 de maio, pois é fato que esse foi o dia em que mais de cinco milhões de homens e mulheres negras foram condenados a viver subordinadas a uma República escravista, racista e excludente que inviabilizou a inclusão da população negra nas política pensadas para estruturar o Estado brasileiro.

* Tadeu Augusto Matheus, conhecido como Tadeu Kaçula, é sociólogo pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador nacional da Nova Frente Negra Brasileira (NFNB), fundador do Instituto Cultural Samba Autêntico e autor do livro “Casa Verde, uma pequena África paulistana”.

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