Para Elisangela Lima, é importante lembrar que até mesmo uma festa que propõe como tema a liberdade dos corpos, luta e resistência, está imersa em um processo dialético de opressões raciais, de gênero, sexualidade e classe
Texto / Elisangela Lima
Imagem / Reprodução / Black Women Brasil
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É difícil definir o carnaval em uma ou poucas palavras, mas é possível afirmar que se trata de uma festa onde se comemora distintas manifestações de liberdades. As tradições de blocos, marchinhas, desfiles de escolas de samba (e o próprio samba), trazem consigo inspiradoras histórias de luta, ancestralidade e resistência cultural. As tradições das fantasias e máscaras pontuam o espírito livre e infrator.
Dito isso, é importante lembrar que até mesmo uma festa que propõe como tema a liberdade dos corpos, luta e resistência, está imersa em um processo dialético de opressões raciais, de gênero, sexualidade e classe.
Um breve exemplo é o assédio que as mulheres sofrem, pois em uma festa que se propõe livre, em um mundo onde o corpo da mulher ainda é preso a amarras patriarcais, é estranhamente comum encontrar assediadores.
Exercitar esse direito entre mulheres se faz importante; pontuar que é um direito de todos (as) transitar em espaços públicos e domésticos e decidir sobre seu corpo, igualmente como ocorre com homens brancos e héteros, se faz diariamente necessário. Afinal, não é não! E nenhuma liberdade é plena; o limite é quando interfere na liberdade do outro.
Um exemplo ao lidar com o espírito infrator típico do carnaval é o estereótipo do suspeito padrão, quase sempre na figura de um homem negro. Ou até mesmo a sexualização dos corpos negros em fantasias exageradas e que ridicularizam.
Ao abordar a questão racial no tema “O carnaval e a carne negra”, pretendo expor uma complexidade colonial e alertar para os corpos violados que carregam construções sociais bem diferentes. Apesar de serem construções simbólicas, no limite, desumanizam ao mesmo tempo que validam as violações físicas.
O carnaval é uma época do ano que todos devem aproveitar sem qualquer opressão (Foto: Reprodução/Ilu Iña)
Essas construções sociais em torno de determinados corpos são espelhos da realidade ou a influenciam? Tais construções estão apenas revelando o que o mundo vê, moldando quem assiste/observa/reproduz, ou todas as opções? O texto defende que as representações são importantes para a construção da realidade subjetiva e coletiva! Vamos aos exemplos:
No livro escrito por ngela Davis nos anos 1980 e publicado recentemente pela Boitempo, “Mulheres, Raça e Classe” (2016), logo no primeiro capítulo Davis apresenta o legado da escravidão na construção social e racial do ser homem e mulher norte-americanos; Em suas palavras:“(…)Os arranjos econômicos da escravidão contradiziam os papéis sexuais hierárquicos incorporados na nova ideologia.” (p.29)
Ao tratar das diferentes construções sociais a partir do movimento de mulheres no Brasil, Sueli Carneiro expõe como elas interferem nas desigualdades, em seu artigo Mulheres em Movimento (2003: 119): “(…) para as mulheres negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre homens e mulheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobilidade social, uma vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais, encontram-se abaixo das mulheres brancas.”
As duas citações são no mínimo interessantes para pensar inúmeros exemplos, mas inicialmente irei destacar um em especial: o caso envolvendo a mudança de papel desempenhado pela Globeleza e as reivindicações dos diferentes movimentos feministas. Logo após, irei expor a partir de outros exemplos, como essas construções sociais atingem homens e mulheres negras (os).
Na época em que a Globo finalmente decidiu ouvir o movimento de mulheres negras, que por sua vez reivindicaram o fim da “mulata” globeleza, surgiram algumas manifestações apontando conservadorismo por parte do movimento.
Desde o surgimento nos anos 90, a figura da Globeleza reforçou a hipersexualização e exotização que limita o corpo de boa parte das mulheres negras. Hoje, ao invés de uma mulher negra dentro dos padrões aceitáveis (traços finos, pele clara e corpão) sambando seminua nas vinhetas da Globo, temos a versão da globeleza junto a demonstrações da diversidade do carnaval brasileiro, mostrando o maracatu, frevo, samba, entre outras manifestações culturais e vestindo as roupas características.
Logo no início da mudança, algumas feministas brancas surgiram afirmando que o papel da globeleza tradicional era na verdade um símbolo de liberdade sexual da mulher no carnaval e que as feministas negras eram conservadoras.
Ora, é de conhecimento de boa parte do movimento que a sexualização do corpo feminino por marcas de cervejas e programas de entretenimento estão longe de desempenhar um papel de emancipação sexual, nesse caso seria diferente por qual motivo?
Se trata sobretudo de papéis em que acostumamos visualizar mulheres negras: como a “mulata exportação” do carnaval, a empregada e babá doméstica, a barraqueira, insensível, mãe de todos, etc. Não à toa, uma das bandeiras levantadas por feministas brancas em torno da liberdade sexual e do trabalho esteja atrelada à sua experiência enquanto mulher branca em uma sociedade de classes.
Com elas, a construção social do feminino sempre fez mais sentido no ideário machista. São colocadas como delicadas, produto para a instituição matrimonial, símbolo da santidade, moralidade e beleza ideal/angelical. É compreensivo (ou ao menos deveria) que queiram reivindicar a possibilidade de transitar com liberdade em ser e se enxergar de outra forma.
A questão é justamente ampliar esse direito para as distintas construções sociais de ser e viver como mulher; considerando mulheres trans, indígenas, asiáticas, negras, lésbicas, bi, e por aí vai. No caso da globeleza, as mulheres negras em sua diversidade.
Infelizmente existe uma resistência histórica em compreender a necessidade da liberdade em relação aos corpos negros. São muitas das vezes atravessados por distintas opressões, como no caso de uma mulher que é lésbica, preta e favelada e não escolhe em qual momento ser um ou outro. E uma resistência maior ainda, quando passamos a reivindicar nossa subjetividade; uma vez que a visão racista personifica e agrupa pessoas negras de forma incomum.
Aí está a diferença com homens e mulheres brancas! O sistema que os beneficia é o mesmo que nos isola, essas emaranhadas relações de poder possibilitam uma predefinição territorial; tanto que é comum haver espanto ao ver negros em universidades e naturalidade em ver negros morrendo aos montes em chacinas, ou encarcerados em massa nos precários presídios do país.
Em uma sociedade competitiva onde um grupo é superestimado e o outro subestimado, as oportunidades são claramente brancas. Homens e mulheres negras carregam como legado da escravidão a comercialização dos corpos de forma animalizada, ridicularizada e hipersexualizada – a carne mais barata do mercado. É primordial pontuar que é a população preta que está mais suscetível à pobreza e marginalização, assim como é importante entender a raiz do problema.
Da mesma forma que o ideal feminino não pertence às mulheres negras e suas trajetórias, a construção da masculinidade ocidental excluiu os homens negros como figura tradicional: “(…)Assim como as mulheres negras dificilmente eram “mulheres” no sentido corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros.” (DAVIS, 2016: 26)
No caso dos homens negros em relação ao carnaval se popularizou a figura do Negão da Piroca reduzindo a uma parte do corpo, onde é lembrado como instrumento sexual. Por vezes vistos como agressivos e inacessíveis. Um exemplo para ilustrar é a fantasia vendida no Mercado Livre em formato de pênis. A pessoa que compra, no valor de R$ 169,90, veste literalmente uma fantasia de pênis!
Outro exemplo emblemático ocorreu em Pernambuco no carnaval de 2017. Dois homens brancos se fantasiam de “Negão do Whatsapp” em um concurso de fantasias e chegam inclusive a ganhar em primeiro lugar. Felizmente houve uma pressão por parte dos movimentos que repercutiu, reprovando o ato e apontando a prática de blackface e desumanização característica desse tipo de manifestação.
É muito comum associar homens e mulheres negras com a “cor do pecado”.
Existe inclusive uma cobrança maior em torno da sexualidade, pois devida a única possibilidade visualizada pela branquitude (sexual, corpo e não mente), a única sexualidade possível é a heteronormativa. Para muitos, é algo inconcebível imaginar um homem negro e gay, mais do que com homens brancos e gays.
Outro exemplo comum de blackface são as fantasias de Nega Maluca. Além de pintar os rostos de tinta preta, os traços são exagerados; o próprio nome dado à fantasia já diz muito. Não é possível que alguém realmente acredite na ingenuidade de uma fantasia como essa.
Para finalizar, quando falamos de questões estruturais como as desigualdades de gênero, raça e classe, é preciso ter em mente que a dimensão estrutural agrega questões tanto políticas e econômicas, quanto subjetivas/culturais.
Não é possível que se pense a dimensão estrutural sem compreender como essa estrutura pauta os indivíduos e como isso reflete na ação coletiva. Quando a sociedade vê um corpo negro morto no chão, não enxerga um indivíduo, um ser humano, digno de direitos, de acordo com o que determina a construção moral, ocidental e cristã em torno dos direitos humanos.
Ao contrário, é visualizado toda a simbologia colonial e eugenista que paira no imaginário racista da sociedade. É visto como mais um negro, como um grupo, não indivíduo.
Reverter essa óptica é luta e dever de toda a sociedade! Como bem disse ngela Davis “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.”, sobretudo em um momento de aprofundamento da desigualdade e autoritarismo a partir da lógica neoliberal de cortar seguridade social e reforçar o braço armado do Estado. Nesse sentido a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco.
REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, p. 7-372, 2003.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.