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O inimigo combatido com a violência é racialmente construído

Cada número de violência representa uma dor coletiva e é fruto de uma política de morte (necropolítica) aos grupos desprivilegiados

Texto: Dudu Ribeiro | Imagem: Reprodução

Dudu Ribeiro, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia e co-fundador da Iniciativa negra por uma nova política de drogas.

22 de julho de 2021

Para cosmovisão africana ubuntu, eu sou porque pertenço. Portanto, cada bala, cada dor, cada trajetória que se torna um dado de violência nos afeta em coletividade. Em um sentido que a cosmovisão ocidental branca não consegue alcançar, pois está baseada na ideia do “eu”. Há dois anos na Rede de Observatórios da Segurança, registramos eventos de violência na Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, e nós ruminamos, processamos, deglutimos, e somos afetados pelas nossas pesquisas. De junho de 2019 a maio de 2021 foram 31.535 casos monitorados nos cinco estados. Ou, um caso a cada 33 minutos.

Cada número do novo relatório da Rede “A vida resiste: além dos dados da violência” representa uma dor coletiva e é fruto de uma política de morte (necropolítica) aos grupos desprivilegiados – no imaginário comum vistos como inimigos -, é condição para o que Achille Mbembe chama de política da inimizade. Nós podemos afirmar e comprovar com o nosso monitoramento na Rede de Observatório que a construção desse inimigo combatido com a violência de estado é racialmente determinada. Uma tática que tanto não protege todas as vidas, como se orienta para a distribuição da morte territorialmente. O racismo é motor da violência.

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A exemplo disso, dentre os estados da Rede de Observatórios, a Bahia apresenta a polícia mais letal do nordeste e é o estado que possui a maior porcentagem de operações policiais motivadas pela repressão ao tráfico de drogas: foram 824, que equivalem a 36% do total de ações entre junho de 2019 e maio de 2021, enquanto no Ceará essa motivação representa 19%, em Pernambuco 26%, no Rio de Janeiro 20% e, em São Paulo, 14%. O resultado das ações policiais nesse período foram 416 mortes na Bahia – onde 97% dos mortos pela polícia são negros, segundo o boletim A bala não erra o alvo, também da Rede de Observatório. Diante desses dados, eu pergunto quem é o inimigo?

Vivemos um verdadeiro massacre transnacional, com efeito corrosivo no tecido social dos países mais afetados, entre eles o Brasil, corrompendo mesmo os pilares daquelas democracias liberais, perpetuando um profundo enraizamento dos elementos dessa cultura do conflito na formação de gerações, a partir de uma socialização distribuída por uma economia das violências que nós enxerga como inimigos. Os prolongados e custosos conflitos internos impactam diretamente na capacidade de investimento do Estado em políticas públicas, sequestram vultosos recursos para a indústria bélica, direcionam as expectativas para uma disputa de poder de fogo entre “o Estado e o crime”, que incentiva ciclos de violência intermináveis e impedem qualquer perspectiva de incentivo à construção da paz.

O imaginário comum – onde seremos, negras e negros, o “outro”, o inimigo – é uma construção do homem branco. Nessa lógica, a humanidade é o que mais pode se aproximar da branquitude. Os demais povos racializados são subjugados à lógica desta supremacia. Essas condições privilegiam e contaminam a possibilidade de existência, a partir unicamente da expectativa de sobreviver. No mundo conceitual branco, o inconsciente coletivo das pessoas negras estará sempre pré-programado para a alienação, decepção e trauma. Não é portanto com o sujeito negro que lidamos, mas com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser. Como respostas, podemos não viver sob a ótica do objeto da exploração e da violência de outros povos, como sugeriu C.R.L James.

Uma forma de contribuir para o rompimento dessa ótica é a produção cidadã de dados que realizamos na Rede de Observatórios da Segurança. O monitoramento nos permite criar novas narrativas em um estado que se omite na produção e divulgação de dados que servem de base para políticas públicas que poderiam favorecer os mais vulneráveis.

O objetivo é nos tornar sólidos, fazer todo o possível para o nosso povo florescer como farol de uma perspectiva outra de mundo, permitindo a (re)constituição de uma comunidade centrada na vida e o restabelecimento do ciclo vital que ressignifica a morte. Continuaremos a combater os mecanismos que nos produz a morte violenta, a insistência na política de certidão de óbito. A violência racial que atua para esvaziar a vida. A vida resistirá: “meu sangue é semente que o vento enraíza”, “meu nome é aquele que não morre”. “Um dia eu faço a vida viver”.

Dudu Ribeiro, coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia e co-fundador da Iniciativa negra por uma nova política de drogas.

Leia também: Polícia é responsável por 60% dos casos de violência registrados em cinco estados

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