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O problema do tratamento das questões raciais e de gênero como pautas identitárias

12 de novembro de 2019

É fundamental incorporar a questão racial e de gênero como ferramentas analíticas para a real compreensão do processo produtivo nas economias dependentes; Gabriela Mendes Chaves é economista pela PUC-SP e mestranda em economia política mundial pela UFABC

 Texto / Gabriela Mendes Chaves * | Imagem / Coletivo Di Campana

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O tratamento das questões racial e de gênero como questões identitárias é um problema porque ofusca as relações de exploração que estruturam essas construções. No caso da questão racial, a sublocação da força de trabalho negra na economia é evidente em estatísticas recentes do mercado de trabalho brasileiro.

Dados da ONU, por exemplo, colocam a questão racial no centro das relações de trabalho até hoje: a cor da pele é um componente central e estruturante nas desigualdades no Brasil, afetando o acesso ao emprego e a maiores níveis de desenvolvimento (ONU, 2018). Desta forma, a questão racial se torna fundamental para a compreensão dos mecanismos de perpetuação da superexploração nas economias dependentes. Acerca da relação entre racismo e exploração Barbosa (2009, p. 81) é categórico:

“A raça negra não é uma naturalidade, mas uma relação social. Enquanto relação social, ela é o elemento sustentador da exploração, porque todo êxito não-negro está alicerçado sobre a exploração do negro. A hipocrisia analítica da ciência social oficial brasileira consiste em não perceber o capital como a exploração preferencial dos negros, como a captação de sua mais-valia, como a construção de um lucro adicional sobre cadáveres negros. Por outro lado, a sobre-exploração dos negros permite viabilizar para a população branca uma redução de suas jornadas de trabalho e a perpetuação de que explorem mercados primitivos locais, constantemente reconstituídos pela esfera pública.”

As relações raciais, de conformação social, permitem compreender os mecanismos sob os quais a economia dependente hierarquiza e promove a superexploração da força de trabalho. Farias (2017, p. 410) endossa a tese defendida por Barbosa:

“A escravidão explica até certo ponto a condição a que a população negra está submetida no Brasil atual. O outro tanto deve-se em conta ao racismo como ideologia de dominação e exploração. Racismo gera mais valor! E gera mais valor não no ato em si. Na atividade, estamos na esfera do ser genérico, universal. A martelada do trabalhador negro não difere em essência da do trabalhador branco. Da mesma forma que o ‘alô!’ da atendente de telemarketing negra não é diferente de sua companheira de labuta branca. Mas, conforma o antes e o depois, a condição salarial e de reinvindicações escamoteia precarizações e as legitima. No limite, a tal superexploração da classe trabalhadora latino-americana tão discutida pela teoria da dependência só é possível tendo o racismo como seu principal alicerce. É ele que conforma material e subjetivamente esse trabalhador pauperizado.”

Nesse sentido, é importante compreender que a questão racial consiste em uma chave analítica crucial para compreensão das determinações da superexploração no interior das economias dependentes. Parafraseando Silvio de Almeida (2018, p.39), queremos enfatizar, do ponto de vista teórico, que o racismo, como processo histórico, político e econômico, cria as condições sociais para que grupos racialmente identificados sejam explorados de forma sistemática.

No que tange a questão das mulheres, de acordo com um relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho), as mulheres representam 51,2% da população total e 52,1% da população em idade produtiva, representando cerca de 71,7% da população fora do mercado de trabalho formal e 41,1% da força de trabalho empregada formalmente. O documento também aponta a desproporcionalidade de afazeres relacionados ao cuidado como um dos principais componentes dessa disparidade.

A consolidação do capitalismo industrial promoveu uma separação rigorosa entre a esfera econômica e a economia familiar. O avanço do sistema fabril atribuiu valor de troca para as mercadorias produzidas e desvalorizou o trabalho produzido no âmbito das relações reprodutivas. “Como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista”. (DAVIS, 2016, p. 230).

A produção teórica feminista dedicou-se vastamente sobre compreender como a divisão sexual do trabalho incide sobre a dimensão do trabalho reprodutivo, num esforço de ampliar a noção de trabalho proposta por Marx. Na definição das autoras, divisão sexual do trabalho é a forma de “divisão do trabalho social decorrente das relações entre sexos.” (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599).

“A diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiram ao capitalismo ampliar imensamente “a parte não remunerada do dia de trabalho” e usar o salário (masculino) para acumular trabalho feminino. Em muitos casos, servira, também, para desviar o antagonismo de classe para um antagonismo entre homens e mulheres. Dessa forma, a acumulação primitiva foi, sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdades, hierarquias e divisões que separam os trabalhadores entre si e, inclusive, alienaram a eles mesmos.” (FEDERICI, 2017, pp.232-234).

Uma das principais características da divisão sexual do trabalho é a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva. Os estudos que têm se debruçado sobre o gênero e as diferenciações sociais atribuída a homens e mulheres, assim como as relações raciais e de produção, são frutos de construções sociais e históricas, e não meramente atributos biológicos.

Desta forma, a sociedade capitalista cria mecanismos que conferem aos homens as ocupações com maior valor social adicionado e às mulheres ocupações com menor valor agregado e visibilidade social. Essa forma de divisão do trabalho se estrutura em dois princípios: o princípio da separação (há trabalhos de homens e de mulheres) e o princípio hierárquico (no qual o trabalho do homem tem mais valor que o trabalho da mulher) (HIRATA e KERGOAT, 2007, pp. 599-600).

O androcentrismo teórico, muito presente também no âmbito das ciências econômicas, se expressa na atenção analítica que as teorias sociais têm atribuído à questão da divisão sexual do trabalho reprodutivo: às margens do enfoque analítico, assim como a questão racial.

Nesse sentido, é importante verificar a interação entre essas categorias analíticas e seu efeito no âmbito das relações econômicas. Ou devemos desconsiderar a constatação empírica de que as mulheres negras, em pleno século XXI, recebem sistematicamente as menores remunerações sociais, mesmo com o mesmo nível de formação? Os dados empíricos não nos permitem tal façanha. Nesse sentido, é fundamental incorporar a questão racial e de gênero como ferramentas analíticas para a real compreensão do processo produtivo nas economias dependentes.

Não se trata, como resmungam marxistas ortodoxos, de fracionar ou ocultar a luta de classes. Apreender como as determinações sociais de gênero e raça se inserem no bojo das relações produtivas é uma tarefa fundamental para determinar os mecanismos pelos quais a exploração se configura, ontem e hoje. Trata-se de compreender a formação da classe trabalhadora latino-americana em sua composição real, sem a adulteração do fato concreto em nome de uma formulação teórica ortodoxa.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luis. O que é racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BARBOSA, Wilson do Nascimento. A Discriminação do Negro como Fato Estruturador do Poder. São Paulo: Sankofa – Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, nº3, 2009.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981].

FARIAS, Márcio. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil. Brasília: Ser Social, v.19, nº41, p.398-412, 2017.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017 [2004].
HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v.37, n.132, set/dez, p.595-609, 2007.

OIT; CEPAL; FAO; ONU Mujeres; PNUD (Organización Internacional del Trabajo, Comisión Económica para América Latina y el Caribe, Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura, Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo y ONU Mujeres). Trabajo decente e igualdad de género. Políticas para mejorar el acceso y la calidad del empleo de las mujeres en América Latina y el Caribe. Santiago: OIT, 2013. Disponível aqui.

ONU. Desigualdades raciais no Brasil comprometem oportunidades de trabalho e desenvolvimento humano. 2018. Disponível aqui.

* Gabriela Mendes Chaves é economista pela PUC-SP e mestranda em economia política mundial pela UFABC. É também fundadora da NoFront – Empoderamento Financeiro, plataforma de educação financeira voltada à comunidade negra. Realiza pesquisas nas áreas de economia política, trabalho, gênero, questões raciais e políticas públicas.

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